Morte assistida

Publicado a
Atualizado a

Esta semana, trabalhadores com salários em atraso pediram a ajuda dos portugueses. Pedem esta coisa simples: que as pessoas comprem, frequentem, valorizem o que produzem. Estes trabalhadores são na sua maioria jornalistas. Trabalham para o Diário Económico e o Económico TV. E, apesar de ainda não terem recebido o ordenado de dezembro, propõem-se continuar a trabalhar "com a mesma qualidade, seriedade e profissionalismo que sempre demonstraram". Porque "acreditam que [a marca] tem condições para voltar a prosperar e a contribuir de forma decisiva para o pluralismo da sociedade portuguesa."

Não sei, francamente, se pluralismo é exatamente o nome do meio da marca Económico. Mas não é isso que releva; o comunicado desta redação falou-me ao coração. Porque acredito que o jornalismo é fundamental à democracia, e porque como jornalista e cidadã quero que haja diversidade de visões, de abordagens, de perspetivas - desde que sérias. Sei, porém, que o jornalismo é um produto com cada vez menos procura. As pessoas não querem pagar para o ter e de um modo geral nem sabem o que é. Aliás, os produtos do "segmento jornalístico" pelos quais se dispõem a pagar são os que de jornalismo pouco ou nada têm. Os sensacionalistas, que se especializam na devassa e na exploração das curiosidades mórbidas, que publicam completas falsidades, que passam velórios em direto, que publicam depoimentos de crianças de 12 anos prestados em sala fechada ao público, que acusam sem provas e condenam sem contemplações. Fazem por sistema tudo o que está legalmente estipulado ser violação do estatuto de jornalista; não raro cometem, alegremente, crimes. E tudo isto perante a completa inação, quando não a cumplicidade, de todos, ou quase todos. E sobretudo perante a apatia suicidária dos jornalistas que, tolhidos pela cobardia corporativa, se deixaram trucidar sem um ai.

Não vale mais a pena dizer que quando acordarmos será tarde; já é tarde. Aconteceu muito rápido. É ver O Caso Spotlight, em exibição nos cinemas portugueses, e perceber que aquilo, que se passou há 15 anos, seria impossível hoje; que não só nunca haveria dinheiro para investigar durante meses, para mergulhar nos arquivos (quando arquivos há), como jamais seria possível ver editores a resistir a publicar um escândalo até terem a certeza de que aquilo que iam publicar ia mesmo fazer diferença - não nas vendas do jornal mas na realidade; que essencial era provar que existia um esquema de encobrimento de padres abusadores de crianças de modo a acabar com ele e, desejavelmente, com o abuso. É deste jornalismo que precisamos; que precisávamos. O que distingue o bem do mal, o que segue os procedimentos e nunca perde de vista a sua missão, que é - sim, é mesmo essa, puxem dos kleenexes - a de tornar o mundo melhor. Jornalismo - e dizer isto já diz tudo, porque não deveria ser preciso dizê-lo - com consciência. Só há esse. O resto é maldade. E a maldade é que vende.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt