Isto não é sobre a Cova da Moura

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Desde que foi conhecida a acusação do MP contra toda a esquadra de Alfragide, quase todo o noticiário e argumentário sobre o assunto se fixa na relação entre a polícia e a Cova da Moura e as especificidades do bairro. Eu própria fiz uma reportagem sobre essa relação, publicada anteontem no DN, e que dá a ver, a partir do relato de habitantes e trabalhadores negros da zona, um padrão consistente de abuso policial e racismo. Mas, por mais que seja importante perceber e analisar a forma como as polícias se relacionam com os cidadãos dos bairros classificados como "problemáticos" (e vice-versa), aquilo que este caso evidencia ultrapassa em muito essa relação.

Na verdade, o facto de quase toda a análise se fixar na "excecionalidade" da Cova da Moura é uma forma de, conscientemente ou não, passar a mensagem de que eventuais abusos policiais se circunscrevem ao quadro da relação entre autoridades e bairros como aquele. Essa abordagem acaba por, muitas vezes, "naturalizar" esses abusos com base na alegada "perigosidade" dos ditos bairros, como se estes estivessem sob uma espécie de estado de sítio permanente, no qual as leis "normais" não se aplicam.

Só nessa perspetiva, a da justificação institucional - e nesse caso deliberada - dos abusos, se pode entender que por exemplo um representante da PSP, o subintendente Resende, tenha, num debate na TVI24 a 11 de julho, insistido na referência à morte, em 2005, de um agente da PSP na Cova da Moura. Que relação quer a PSP estabelecer entre uma acusação de abuso policial que inclui sequestro, ofensas à integridade física, tratamentos desumanos, denúncia caluniosa, omissão de auxílio e falsificação de documentos e um homicídio ocorrido dez anos antes? Não perceberão a PSP e o subintendente que trazer à colação este homicídio é subentender que a serem verdadeiros os factos imputados pelo MP à esquadra de Alfragide estes devem ser "contextualizados" porque já houve um polícia morto no bairro? É mesmo isso que a PSP quer dizer, que naquele bairro se considera autorizada a violar a lei por ajuste de contas e vingança?

Esta ideia de "justificação" não é aliás exclusiva da PSP e dos comentários online. Na mesma estação, num outro programa, lançou-se no final de um debate um vídeo sem som, contexto ou sequer identificação de origem, no qual dois jovens negros, sentados numa mesa, são abordados por uma série de agentes do corpo de intervenção. Segundo o pivô da TVI24, aquilo ter-se-ia passado em Loures e os agentes estariam a pedir aos jovens para saírem da mesa; estes desobedeciam à ordem. A dada altura, os jovens levantam-se, parecendo exaltados, e um dos agentes agride um deles, mandando-o ao chão. A seguir, o pivô pede aos convidados, nos quais se incluía o já citado subintendente, que digam "se aquilo é violência policial".

Achar que faz sentido, num debate sobre a acusação à esquadra de Alfragide, mostrar um vídeo qualquer de interação entre polícias e negros é de um racismo tão básico que custa a crer - devemos achar que estamos a ver o "comportamento típico de negros" ante polícias, será? Se a ideia da TVI era enquadrar a noção de violência policial, porque não lhe ocorreu trazer para a discussão o caso do subcomissário Filipe Silva, filmado a agredir dois adeptos do Benfica no final de um jogo de futebol em Guimarães, caso que tem óbvias conexões com o de Alfragide, já que também Silva foi acusado de denúncia caluniosa e falsificação de documentos, e também havia vários agentes presentes a coadjuvar a agressão? E será assim tão difícil perceber que não está em causa se o vídeo mostra violência policial - que outra coisa se poderá chamar àquela agressão - mas se esta foi legítima?

Há, obviamente, circunstâncias em que as polícias estão legalmente autorizadas a fazer uso de violência física, e até letal - por esse motivo estão armadas. Mas essas circunstâncias não incluem "desobediência" per se, muito menos estados de alma dos agentes. Para ser legal, a violência tem de ser estritamente necessária e adequada; não é uma espécie de direito da polícia. Além de que, como é evidente, existem ordens ilegítimas a que não é ilegal desobedecer. Mas o subintendente Resende apressou-se a justificar a reação do agente com a "desobediência" dos jovens. Se é esta a noção de adequação e proporcionalidade do uso da violência pela polícia que um subintendente escolhido* para ir à TV tem, que podemos esperar do resto da corporação?

O caso da Cova da Moura é mais um sintoma do desrespeito pela lei e pelos direitos dos cidadãos por parte da polícia portuguesa, um desrespeito que tem passado impune graças à cobertura institucional. Cobertura da hierarquia, das tutelas, da justiça e até, como se constata face ao facto de o INEM ter aceitado como boa a justificação de que os detidos na esquadra de Alfragide tinham "caído"**, dos serviços de saúde. É um problema do Estado e portanto um problema político, como político é o problema do racismo - o institucional e o outro. Num país em que tanta gente tem falado do falhanço "clamoroso" do Estado, é sintomático que tão poucos, dentro e fora dos partidos, o vejam nisto, e menos ainda peçam responsabilidades ao governo. E, num contexto de maioria de esquerda, chocante que só o BE esteja a fazer as despesas do questionamento.

Nota:

* Num post no Facebook, o subintendente Jorge Resende esclarece que foi convidado para os programas citados na qualidade de presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Polícia e não como representante denominado pela PSP. Pela imprecisão peço desculpa ao visado e aos leitores; mantenho tudo o resto, que pode ser verificado nos programas citados, transmitidos a 11 e a 14 de julho..

** Quando referi o INEM neste texto, este ainda não desmentira a notícia do DN referida no mesmo. Veio posteriormente o INEM certificar que os seus técnicos escreveram nos verbetes da ocorrência que a causa das lesões apresentadas pelos detidos na esquadra de Alfragide teria sido "agressões" (os verbetes do INEM onde se lia "queda acidental" teriam sido escritos por bombeiros). Mas, apesar disso, não comunicaram o crime a ninguém porque foi a polícia que os chamou e portanto consideraram que a polícia já teria tomado conta da ocorrência. Ou seja, os técnicos do INEM, perante evidência de agressões em detidos, ou não colocaram a hipótese de essas agressões estarem relacionadas com a detenção -- isto apesar de um dos agredidos apresentar lesões compatíveis com ter sido atingido por uma bala de borracha -- ou, colocando-a, acharam que não lhes cabia fazer nada sobre o assunto. Não sei qual das duas hipóteses é a pior. Mas sei que isto exige um esclarecimento do INEM sobre qual a regra de conduta perante evidência de agressões e, nomeadamente, em detidos ou presos, e sobre o que este organismo público considera serem as obrigações de técnicos de saúde perante um crime público, no caso o de agressões à integridade física qualificadas.

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