O silêncio dos inocentes

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Por mais que se queira negar esta realidade, ser vítima de abuso sexual foi sempre, e continua a ser, uma experiência frequente na vida de muitas crianças, e uma das mais dolorosas. Fenómeno vivido em segredo e marcado pelo silêncio que oprime. A maior parte dos abusos acontecem no espaço familiar e são praticados por indivíduos insuspeitos e até socialmente bem inseridos. Nas raras vezes em que a criança fala e em que uma pessoa adulta da sua confiança denuncia o crime às autoridades, estamos perante a batalha judicial em que a desigualdade de poder é mais elevada. Falar em «acusações falsas» e identificá-las com a percentagem de arquivamentos dos processos-crime é ser conivente com a estratégia do abusador.
O Ministério Público, encarregado de intentar a ação penal, só tem como elemento de prova, na esmagadora maioria dos casos, a palavra de uma criança muito pequena, que pode ter apenas 3 ou 4 anos, a qual, numa cultura adultocêntrica e patriarcal, é fácil de descredibilizar. Foi o que se fez sempre ao longo da história, criando conceitos com pretensão de cientificidade. Exemplificativos são os complexos de Édipo e de Eletra, de origem freudiana, que imputam às crianças fantasias sexuais em relação aos adultos e os absolvem dos seus impulsos pedófilos e, mais recentemente, o conceito de alienação parental usado por alguns progenitores acusados de abuso sexual, em sua defesa. Este conceito não tem validade científica e tem sido divulgado em cursos para profissionais como se a tivesse, o que tem conduzido à sua aplicação acrítica. A síndrome de alienação parental foi criada por um psiquiatra norte-americano, Richard Gardner, que fez a sua carreira a defender indivíduos acusados de abuso sexual. Por isso não tem a neutralidade necessária para ser usada pelos tribunais e coloca as crianças em perigo, pois aconselha a inversão da guarda a favor dos progenitores suspeitos de abuso sexual. Este autor, num livro intitulado True and False Accusations of Child Sex Abuse, defende que a pedofilia é boa para a humanidade e que as crianças vítimas de abuso não sofrem. A estes conceitos pretensamente científicos somam-se os estereótipos de uma sociedade que ainda não despertou para o abuso sexual de crianças dentro da família porque acredita num mundo justo e, para seu conforto, opta por pensar que uma realidade tão sórdida, sobretudo quando o acusado é o pai da criança, tem de ser mentira. O abuso sexual de crianças exige profissionais especializados para entrevistar a criança. A probabilidade de "falsos negativos", isto é, de exames médicos cujos resultados são inconclusivos, porque não confirmam nem negam o abuso, é muito elevada.
A maioria dos abusos sexuais de crianças não deixam marcas físicas. Mesmo que estas existam, desaparecem dentro de um período de 48 a 72 horas após o abuso. O único elemento de prova é a palavra da criança e os relatórios psicológicos, que os tribunais nem sempre estão preparados para compreender, devido às diferenças entre a linguagem da psicologia e os conceitos jurídicos que têm de ser precisos. O princípio da precocidade na audição para memória futura não tem sido observado. As crianças nem sempre contam o abuso, mas revelam os sintomas emocionais de vitimação, descritos nos relatórios psicológicos. Não se pode afirmar - é uma irresponsabilidade fazê-lo - que a taxa de arquivamentos corresponda a falsas denúncias ou que a guarda deva ser entregue a um progenitor suspeito de abuso sexual com processo-crime pendente ou com processo arquivado por insuficiência de prova. Nos processos tutelares cíveis, norteados pelo primado do interesse da criança, não pode deixar de prevalecer a sua proteção. A presunção de inocência, no processo penal, não exige que o suspeito tenha como prémio a guarda da criança! Reconhecemos que pode haver casos de pais acusados sem fundamento, embora os estudos afirmem ser muito raro, cerca de 5%, como sucede com outras queixas. Mas na dúvida sobre a ocorrência de um crime desta gravidade, e tão devastador para as crianças, temos de sacrificar os interesses dos adultos aos interesses das crianças.
A sociedade hoje não aceita, com toda a força que tem a alma humana, qualquer hipótese de abuso sexual sobre uma criança!

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