Génio lusitano

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Depois de passar uma temporada em Portugal fico sempre muito admirado por ainda haver problemas graves que assolam o mundo. Com um bom vinho e uns petiscos não há mal suficientemente grande que os portugueses não resolvam à volta da mesa. Um pequeno senão é que esta capacidade portuguesa só funciona com os grandes problemas: a saúde pública, o sistema de ensino, a justiça, a União Europeia, a pobreza, o nosso Benfica, a paz mundial.

A facilidade em encontrar grandes soluções teóricas para os problemas do mundo e da cultura ocidental deve-se ao génio lusitano, tendencialmente abstrato e vasto como o oceano. Já quando os problemas são questões concretas do dia-a-dia, a coisa complica-se.

Os problemas impossíveis de se resolver em terras lusas são regra geral minúsculos: a luz dum poste de iluminação pública que não funciona há anos, o funcionário sem meios ou vontade para atender pessoas, os fios de telecomunicações que alastram nas fachadas dos prédios como a peste negra, a sala de aulas sem aquecimento, o devedor que não paga, o senhorio que não faz obras, o tempo de espera pela consulta, o autocarro que não passa, o vizinho que estaciona o carro no passeio sem deixar espaço para passar um chico fininho.

Esta prodigiosa faceta do carácter nacional permite deixarmos de ver as pequenas monstruosidades que nos rodeiam e é única na Europa. Num país, que por semana fica à frente em dezenas de rankings, é estranho não ter ainda aparecido uma revista internacional a colocar-nos em primeiro lugar na modalidade "olhar para o lado". Eu que sou português, de língua materna, nascido e encartado (apesar de uma avó checa e outra catalã, dum avô austríaco e de um pai alemão), não conheço outro povo assim.

Sim, de facto, a luz intermitente do candeeiro da rua que entra pela janela da sala é muito irritante. E sim, o frigorífico velho atirado para a beira da estrada, os cães e os gatos abandonados, os passeios sujos, não são agradáveis à vista. Mas perder cinco minutos para pegar no telefone ou escrever um e-mail e contactar a EDP, a câmara ou a junta de freguesia, isso não. Isso é demasiado concreto ou mesquinho.

Não há vagas no infantário ou médico de família no centro de saúde?

Tentar fazer alguma coisa não serve de nada, é a desculpa que se ouve sempre, por isso não se tenta fazer nada. "Eles", seres distantes algures nos centros de decisão, "também não fazem a ponta de um corno", "aquilo é só tachos", "anda tudo na mama" ou "só mudam as moscas". Em vez de tomarmos a iniciativa e limparmos nós a porcaria à pazada, é uma enxurrada de desculpas para não mexer uma palha e tudo ficar igual.

Em Portugal a cidadania não é vivida como um direito. É um fardo que se carrega às costas. E por cima do fardo ainda estão "eles" empoleirados, os "lá em cima". Se, por sua vez, pergunto a um de "eles lá em cima", também olham para o lado e dizem-me que são "eles", os "ali ao lado", que lhes empatam o serviço. Num tratado sociológico sobre Portugal o capítulo "sociedade civil" só teria uma frase: outros povos na Europa têm uma sociedade civil, os portugueses têm patuscadas e desculpas na ponta da língua - bem afiada por sinal.

Na Áustria ou na Alemanha, acontece o oposto. Vi isso em Frankfurt, há pouco tempo, quando ia levar a minha filha de 7 anos à escola.

Faltavam lugares para os tempos livres, junto à entrada estavam várias mães e pais e recolher assinaturas. O meu lado português achou logo que não iria servir de nada, que a ação era ingénua e idealista. Logo nessa semana houve uma reunião com o vereador e, na semana seguinte, já havia mais dois grupos na escola com educadores para tomar conta das crianças.

O revés da medalha na Europa mais civilizada: cada cidadão transforma-se em polícia do vizinho, ou porque se pôs o lixo no caixote fora de horas ou porque se atravessou a passadeira antes de o sinal ficar verde para peões. Em Portugal, o nosso civismo, no limite, leva a que alguém grite atrás de um automobilista, como uma vez ouvi em Lisboa quando ia sendo vítima de um acidente numa passagem de peões, "Ó homem, não sabe que é proibido atropelar pessoas nas passadeiras?"

Correspondente do semanário der freitag e do canal n-24

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