Vale do inferno

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A festa continuava com bar aberto e guacamole, mas lá fora a noite estava prestes a cair e a caminhada de volta para o hotel teria de ser feita em passo de corrida. Uma hora antes, vários carros de polícia circulavam lentamente naquela zona. Poças de sangue junto a um semáforo atormentavam uma velha senhora que perguntava "O que aconteceu? O que aconteceu?", a que um sem-abrigo respondeu "O habitual." Nas ruas de São Francisco, a cidade por onde se bamboleiam os novos milionários da indústria tecnoló-gica, não se deve andar à noite sozinha, disseram-me amigos que vivem na cidade.

É difícil andar dois minutos sem interpelação de um grupo de jovens que aparenta viver na rua, pedindo dinheiro para erva. "Não podes dar dinheiro a toda a gente que te pede, não vais fazer outra coisa", avisaram-me. É impossível dar cinco passos sem encontrar pessoas deitadas no chão, pedintes envergonhados, doentes mentais agressivos e tantas outras tragédias pessoais a que a população se habituou a virar a cara. Não é com eles, pensam. São Francisco tornou-se uma das cidades com maiores taxas de crime da Califórnia; só os crimes contra propriedade dispararam 60% desde 2010. Aquela cidade que Scott McKenzie cantou, a das flores nos cabelos e da tolerância progressista, já só existe de forma segregada. Nas comunidades residenciais fechadas. Nos museus e centros de arte. Nas aulas de yoga junto à Golden Gate.

O que se vê mais frequentemente é um trânsito caótico, que põe Los Angeles a um canto. São condutores de Uber que ganham uma miséria e vivem a hora e meia de distância para poderem pagar a renda. São jovens licenciados que se juntam aos dez num apartamento e pagam 1500 dólares por cabeça. O CEO da tecnológica portuguesa Talkdesk, Tiago Paiva, disse-me numa entrevista que paga cinco mil dólares por um T1 no centro da cidade, ao lado da sede da empresa. É surreal, e está tudo ligado. Há cada vez mais sem-abrigo porque muita gente deixou de conseguir pagar rendas, e as rendas sobem cada vez mais porque a loucura de Silicon Valley se alastrou de São José para São Francisco. Os tais novos milionários da indústria chegam e tomam conta de bairros inteiros, acabando por expulsar quem lá viveu durante décadas. As pessoas andam depressa, não fazem contacto visual, habituaram--se a pagar 30 dólares por estacionamento e a ignorar o mundo por detrás dos auscultadores da moda.

Há autocolantes a apelar à resistência a Donald Trump nos postes de eletricidade e nas máquinas de venda de jornais, mas não é o novo presidente quem vai dar cabo disto tudo. É a bolha em que Silicon Valley se meteu que vai explodir, mais tarde ou mais cedo. Não apenas esta bolha inacreditável de imobiliário, mas a bolha de realidade alternativa em que os CEO instantâneos e os seus assistentes andam metidos.

Há demasiados exemplos deste desfasamento entre o que eles vivem e a realidade fora dos 80 quilómetros quadrados que engolfam Silicon Valley. É a startup que recebeu milhões para fazer uma máquina de sumos de 400 dólares, Juicero, são os escândalos contínuos da Uber que nunca têm consequências, são as aplicações absurdas como a Yo, que dá para enviar mensagens a dizer, adivinhem, "Yo", é o nível ridículo de salário necessário para viver acima do limiar da pobreza - mais de oito mil dólares por mês, de acordo com o relatório de 2017 do Department of Housing and Urban Development.

Ouço muitas vezes dizer que Hollywood está infestada de proto-celebridades, que os relacionamentos são fúteis, o trânsito é péssimo, as casas são caras. Conheci portugueses que odiaram Los Angeles, por tudo o que tem de plástico e superficial. Até pode ser verdade, mas nem os cantos mais rocambolescos dos Hollywood Hills se assemelham agora à loucura que se vive em São Francisco. Silicon Valley, que fez mais milionários por metro quadrado do que qualquer outra região na história, que trouxe avanços importantíssimos para o futuro da humanidade, está com toques de reality show tecnológico onde é impossível manter a sanidade. "Antes, ficava muito orgulhoso de levantar a bandeira dos cromos", disse-me Thomas Middleditch, que interpreta um desses CEO na série Silicon Valley da HBO. Agora, "os cromos são os bullies." Mal ele sabe quanto isto é cada vez mais verdade.

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