Vice-presidente rompe com Dilma por carta
Em pleno processo de impeachment contra a presidente do Brasil, o homem que herdará o cargo caso Dilma Rousseff, do PT, seja destituída, o vice-presidente Michel Temer, enviou-lhe na madrugada de ontem uma carta em que recorda as suas mágoas após cinco anos de convívio no poder. O texto de Temer, apesar de o próprio sublinhar que não se trata de um rompimento, é interpretado pelo Palácio do Planalto, pela maioria dos políticos da situação e da oposição e pela imprensa como isso mesmo: uma rutura.
O vice-presidente, líder nacional do PMDB, maior partido brasileiro e aliado do PT desde o primeiro mandato de Lula da Silva, escreveu na mensagem pessoal, a que toda a imprensa brasileira teve imediato acesso, que foi tratado como "figura decorativa" antes de enumerar pequenos episódios em que se sentiu magoado ou em que protegidos seus não foram prestigiados.
Temer queixa-se de que um ministro das suas relações, Moreira Franco, viu o seu ministério, o da Aviação Civil, extinto; que outro protegido seu, o demissionário ministro Eliseu Padilha, foi alvo de desfeitas, como a nomeação para um cargo público de alguém com perfil técnico em vez de um nome da sua confiança; e que o deputado Edinho Araújo, mais um da sua quota pessoal no governo, foi afastado.
Mais: Temer não gostou que Dilma tivesse uma reunião de duas horas com o vice-presidente dos EUA Joe Biden sem a sua presença. E que no episódio em que as diplomacias brasileira e americanas se desentenderam devido às revelações de espionagem lançadas por Edward Snowden tenha sido o ministro da Justiça e não ele o eleito para conversar com o seu homólogo Biden.
Reações
Oficialmente, nem a presidente nem o Planalto se tinham pronunciado durante dia de ontem. Mas o jornalista da Globo News Gerson Camarotti ouviu reações anónimas do núcleo duro de Dilma que publicou no seu blogue. "Carta ridícula", disse ao jornalista um auxiliar direto da presidente, "imagine o Biden a fazer uma coisa destas..."
"Não é coisa de gente grande: tenho vergonha alheia de um homem de 75 anos fazer um gesto destes", afirmou, por sua vez, um ministro do PT. O jornal O Estado de S. Paulo recolheu a opinião de um petista que viu no tom de Temer "algo de jihadista, logo, pró--impeachment". Perante os jornalistas, o deputado Vicentinho, do PT, amenizou. "Pelo que li, pesem as reclamações, não há motivos para separação, mas se ele for pelo golpe, os argumentos que ali estão são muito frágeis." Ronaldo Caiado, líder parlamentar do DEM no Senado, vê na mensagem de Temer "uma declaração, sem rodeios, a favor do impeachment". No PMDB, partido com alas diferentes, houve os que entenderam a carta de Temer como mero desabafo pessoal, quem visse nela uma moção de desconfiança à presidente e até quem sentisse que o vice-presidente "se apequenou".
Na imprensa, o colunista do Yahoo Brasil Matheus Pichonelli achou a carta "uma aula de mesquinharia política" e José Casado, de O Globo, apelidou a dupla presidencial de "inimigos íntimos".
Passo a passo
A carta foi a primeira reação pública de Temer desde que na semana passada Eduardo Cunha, seu colega de partido e presidente da Câmara dos Deputados, resolveu dar andamento ao processo de impeachment. Nessa mesma noite, Dilma criticou Cunha com ministros a seu lado mas não com o seu vice-presidente.
E enquanto auxiliares da presidente, como o ministro da Casa Civil Jaques Wagner, garantiam à imprensa que Temer estaria "certamente do lado da presidente e não do lado do golpe", o vice reunia-se em sua casa com dirigentes do oposicionista PSDB, dispostos a participar num governo sob sua liderança.
Mais tarde, quando Dilma reuniu a cúpula de ministros mais próximos, Temer não respondeu à chamada. Na segunda-feira, apresentou-se a empresários em São Paulo como "ponte" para o país voltar a crescer e sorriu quando 150 gestores o aplaudiram sob gritos de "presidente, presidente".
Já em julho, uma declaração de Temer deixara Dilma de sobreaviso. Em plena crise política, ele afirmara que o Brasil precisava "de alguém para o unificar", declaração entendida como um posicionamento pessoal contra a presidente.
Atraso
O processo de impeachment, que implica oito passos até à destituição, ainda está paralisado no primeiro, a criação de uma comissão de deputados que o vai analisar. Dúvidas quanto à sua composição somam-se a outras relativas à confirmação ou não da habitual paragem para férias - o chamado recesso - dos parlamentares até fevereiro, o que vai atrasando o andamento do processo. Ontem, houve mesmo empurrões e socos na Câmara dos Deputados.
O Planalto tenta acelerá-lo para que as ruas não comecem a pressionar os deputados pelo impeachment, enquanto o presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha é partidário de que se devem protelar os trabalhos.
São Paulo