Um português exemplo de genialidade e de generosidade
Enganei-me na morada e fui parar a uma outra fábrica em Lowell, cidade a norte de Boston. Ligo para Luís Pedroso e percebo que a sua Accutronics é afinal no edifício ao lado. E à porta da fábrica de tijolo avermelhado lá está à minha espera o açoriano de 58 anos famoso na comunidade portuguesa do Massachusetts por ser um craque da tecnologia e um grande filantropo. Antes da Accutronics teve outra empresa, a Qualitronics, que vendeu por um bom preço em 2000, e são pelo menos duas as universidades que conheceram a sua generosidade, com destaque para UMass Lowell e para a UMass Dartmouth, onde existe a cátedra de Estudos Portugueses Hélio e Amélia Pedroso, homenagem aos pais.
De calças de ganga e camisa aos quadrados em tons de azul, Luís recebe-me num sábado à tarde. Peço desculpa pelo atraso, cerca de uma hora, mas o regresso de Provincetown, onde estive em reportagem com os luso-americanos, demorou mais do que esperava. Comigo está Liliana de Sousa, que me deu boleia até Lowell, e que confessou estar curiosa por saber mais da história de Luís. Percebo que acabará tão fascinada como eu pela humildade do empresário, pela história da família oriunda de São Jorge e pelo percurso de sucesso que, no fundo, nos trouxe até este parque industrial.
"É pena que não tenha vindo num dia de semana. Veria a fábrica a trabalhar. Temos 90 funcionários", diz Luís, enquanto faz de cicerone, mostrando as máquinas, algumas verdadeiras novidades tecnológicas como a que foi importada da Coreia do Sul. Confesso que algumas das explicações soaram-me demasiado técnicas, não porque Luís complique o que fala, mas sim porque ele trabalha mesmo com o mais tecnológico que há e isso não é para leigos. "Nós montamos aquilo de que os nossos clientes precisam", sintetiza. Ou seja, uma empresa recebe, por exemplo, uma encomenda de comunicadores ultrassofisticados para serem usados num clube de golfe e depois de os projetar entrega à Accutronics a tarefa de juntar todas as peças.
Para seguir a conversa, sentamo-nos numa sala de reuniões. Comprida mesa de madeira, cadeiras de cabedal. Poderia pertencer a qualquer fábrica do mundo, com um dono de onde quer que fosse, exceto pelo pormenor das fotografias na parede: imagens dessa São Jorge onde Luís nasceu em 1959, filho de Hélio e de Amélia. Tem uma irmã mais velha dois anos, uma outra que é sua gémea e ainda um irmão dois anos mais novo. Vivem todos na zona, todos são hoje sócios de Luís na Accutronics, onde também trabalham sobrinhos.
Luís chegou pela primeira vez à América com 9 anos, mas antes disso chegou a haver uma espécie de aventura africana da família: "Penso que foi por volta de 1964/1965 que fomos para Angola. Tinha havido um sismo e o governo ofereceu terras às famílias que quisessem instalar-se em Angola. Terrenos para plantar. O meu pai tinha família lá. Fomos para o colonato de São Jorge, que ficava perto de Vila Nova, que por sua vez ficava perto de Nova Lisboa. Viajámos no paquete Lima. Éramos 21 famílias de desalojados da ilha de São Jorge. Estivemos lá um ano, mas o meu pai não se deu bem com o clima, e as coisas também não eram como o governo tinha prometido, e resolveu regressar."
O regresso aos Açores de pai, mãe e quatro crianças fez-se. "E no verão, a minha madrinha, que era irmã do meu pai, e que morava na Califórnia, deve de certeza ter falado muito da América, pois dali a dois anos nós estávamos num avião a caminho dos Estados Unidos", conta. Instalaram-se no vale de São Joaquim, zona onde a maior parte das leitarias pertence a açorianos, sobretudo jorgenses e terceirenses. Luís recorda-se de conduzir um trator, algo que seria impensável nos Açores. Foram tempos felizes até que o médico diagnosticou leucemia ao pai, que não chegou a saber, por decisão da mulher. Sem poder trabalhar, Hélio Pedroso decidiu regressar aos Açores. "Chegámos num dia, à Terceira, e no outro dia ele foi ao médico. O médico internou-o num hospital e dali a 30 dias faleceu. Para nós, foi surpresa. A minha mãe sabia, mas a gente não."
Para Amélia, viúva, com quatro filhos menores, ficou a decisão do que fazer. A família em Angola desafiou-os a irem para lá, mas "um senhor lá na Calheta falou com a minha mãe e disse-lhe: "Olhe, a senhora, o melhor que faz, é pegar nas suas crianças e vai para trás, para os Estados Unidos, porque aqui nos Açores não há futuro e Angola mais dia menos dia vai-se." Ela foi comprar os bilhetes".
O regresso à América ocorreu menos de um ano depois de terem saído e por isso continuavam legalizados. Mas, em vez de irem para a Califórnia, o destino foi o Massachusetts, porque uma prima tinha informado que havia fábricas onde as mulheres podiam trabalhar.
É visível a admiração de Luís pela mãe enquanto relata a história familiar. Amélia Pedroso vai trabalhar mal chega a Lowell. "E a minha irmã mais velha, que tinha 16 anos, foi com ela para a fábrica de sapatos. Para ajudar a sustentar a família. Eu, a minha gémea e o meu irmão mais novo fomos para a escola, conta o empresário, num português fluente, só recorrendo ao inglês quando lhe falta alguma palavra. "Eu já sabia inglês, por causa do tempo na Califórnia. Fui para o seventh grade e depois para o liceu, que aqui é o high school. Mas não fui para o college. Fui trabalhar com a minha mãe e irmã na Honeywell, a fazer montagem de eletrónica. Na época a indústria do calçado começara a ir para o Sul."
Luís terminou os estudos com 20 anos. Tinha entrado na escola mais tarde por causa da ida e vinda a Angola. "Perdi dois anos nestas nossas peripécias", explica. De repente, começa a rir--se: "Ah, trabalhei também num banco, ao balcão. Mas só lá aguentei três meses. That was crazy. Uma loucura. Aquelas pessoas vinham trocar o cheque e queriam que eu as conhecesse todas. Diziam: "Vimos aqui há 15 anos." Mas eu respondia que não estava lá há 15 anos." Ri-se de novo. Eu e a Liliana também. Percebe-se que está aliviado por ter chegado, no relato, à fase da vida em que as coisas começaram a correr bem para a família Pedroso, que até hoje continua um exemplo de união.
Depois do banco, de novo a indústria eletrónica. Luís começa como aprendiz, mas ao fim de dois anos e meio está como supervisor. E quando a empresa onde trabalha decidiu fazer montagem automática, desistindo assim de alguns clientes, vê uma oportunidade de criar o próprio negócio. Fala com um companheiro e desafia-o a arriscar. "I know how to work and I trust in myself", diz, em inglês. Pede ajuda para traduzir. Liliana sugere "tenho a convicção de que sei fazer isto". Nasce a Qualitronics. Em pouco tempo a família trabalhava já junta.
Depois o sócio vendeu-lhe a quota e Luís ficou sozinho. "A princípio it was scary", admite, juntando português e inglês para dizer que era assustador tanto que decidir, até porque as vendas cresciam. Acabou por vender a Qualitronics quando surgiu uma proposta, mas também deu esse passo porque tinha tido um burn out, um esgotamento. A empresa tinha 190 trabalhadores.
Foi uma boa decisão em vários sentidos. A venda ocorreu em junho de 2000 e em dezembro deu-se a explosão do dotcom bubble. "Foi no momento certo. E então a companhia que vendi não se deu bem, foi comprada por outra maior, e ao fim de algum tempo fecharam as instalações que tinham em Lowell", conta Luís. Lá fora já é noite. Mas a conversa corre bem. Miguel Vaz, diretor da FLAD, foi quem me sugeriu falar com Luís Pedroso, homem de génio e de generosidade, mas alertara-me para a modéstia do empresário, como fugia dos holofotes. Connosco sentiu-se à vontade, e creio ainda hoje que a presença de Liliana, olhanense e organizadora do Festival Português de Provincetown e por umas horas quase minha assistente, foi importante.
A família de Luís trabalhava ainda na empresa que fechara, tirando a mãe. E foram pedir a Amélia que convencesse Luís a criar novo projeto. Este acabou por ceder. Mas impôs como condição que fossem quatro sócios com partes iguais, mesmo que Luís seja o presidente. Pergunto se as decisões e responsabilidades podem ser partilhadas por todos? "Podem ser, mas não são", e de novo risos. O empresário sabe aquilo que se espera dele, mesmo que o tal burn out o tenha deixado diferente. "À medida que uma pessoa vai ficando mais velha vai ficando a saber mais e não luta tanto, deixa as coisas mais da maneira que são, não precisa de estar stressed sempre."
A empresa tem encomendas que asseguram o futuro. Luís também está ativo na comunidade, fazendo parte da gestão do Enterprise Bank, do Lowell General Hospital e da Theodore Edson Parker Foundation. E são conhecidas as doações às universidades, assim como a ajuda às festas luso-americanas.
Diz sentir-se tanto americano como português. Que quando pediu dupla nacionalidade achou improvável que alguma vez os Estados Unidos e Portugal tivessem problemas e tivesse de escolher. E no futebol, pergunto? "Não sou muito de desportos, mas admito que se fosse a um estádio ver jogar os Estados Unidos e Portugal levantava a bandeira portuguesa", responde. Porquê? "Porque é o mais pequeno. Porque aqui somos imigrantes. E identifico-me com a luta de todos os imigrantes para serem aceites. Quem tem o poder nunca quer ceder, nem que seja um bocadinho."
Luís tem casa em Vale de Milhaços, perto de Almada. É onde vive também uma tia. Depois de mais de uma década sem férias, redescobriu o prazer de visitar Portugal no verão. Com a família, claro.