"Tudo o que remeta para a questão da raça é tabu em Portugal"

Pedro Schacht Pereira nasceu no Porto, em 1969. Vive nos EUA desde 1995. É licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra e doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Universidade de Brown. Leciona na The Ohio State University
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É autor de Filósofos de Trazer por Casa: Cenários da Apropriação da Filosofia em Almeida Garrett, Eça de Queirós e Machado de Assis (2013). Está a trabalhar num livro sobre os discursos que defendem o excecionalismo do colonialismo luso.

O nome Schacht vem donde?

A minha mãe é neta de um alemão que foi para a Guiné fazer negócios no final do século XIX, num momento em que o poder colonial português ainda não se tinha consolidado e havia muita resistência por parte de várias etnias na Guiné. Sei isso não só porque li algumas coisas mas também porque tive acesso ao testamento do meu bisavô e sei que ele deserdou um dos filhos por ter tomado o partido dos nativos. Só dizia isso. Ele morreu nos anos 30 do século passado. Tinha uma família na Alemanha e formou outra na Guiné, com uma mulher mestiça com "pedigree" - tinha um nome português, portanto era uma assimilada.

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Era bígamo, portanto?

Presumo que sim.

Já foi à Guiné?

Por incrível que pareça nunca pus os pés na África subsaariana. É algo que tenho de resolver em breve. E os meus pais - o meu pai era militar, foi lá e conheceu a minha mãe - nunca voltaram lá depois de terem vindo para Portugal, em 1963, que é quando a guerra estala lá.

Na perspetiva americana, é negro.

Se os americanos soubessem da minha história, sim. Por causa do one drop rule ["regra da gota de sangue", que chegou ser lei e considera negra qualquer pessoa com um ascendente negro]. E para mim sempre foi extraordinário lidar com o preenchimento de formulários porque perguntam sempre de que etnia se é.

E como se classifica?

Muitas vezes optei por não responder. E vindo de um país como Portugal, que pretende ser colour blind, ou seja, neutro em relação às questões étnicas e raciais, deparei-me primeiro com a perplexidade de não saber responder. Pensei "identifico-me como europeu". E portanto quando respondi disse-me branco. A categoria latina ou hispânica, que fariam todo o sentido para mim, dizem respeito à América Latina. Deviam incluir espanhóis, franceses, italianos e portugueses... Mas confesso que tem havido uma evolução da minha parte na forma como lido com estas questões, tanto a nível pessoal como profissional.

Essa evolução sucedeu a partir de quando e porquê?

A partir de 2010. Antes estava longe de suspeitar que iria fazer as descobertas que tenho feito. Que Portugal não lida bem com estas questões, não as aceita. Não por uma questão de maldade, digamos assim, mas porque há um grande nível de inocência em relação a elas. Refiro-me ao público em geral, não a pessoas em posições de responsabilidade e certamente não me refiro à academia em que a responsabilidade é ainda maior. Na minha área, na área da literatura, as pessoas que trabalham com questões pós-coloniais fazem-no com o período contemporâneo, pós-colonial. E descobri que só se pode falar de questões pós-coloniais se se tiver um conhecimento bastante vasto do colonialismo e da formação do seu discurso. Ora no caso português isso levou séculos. É impossível pensar Portugal, a história portuguesa, sem pensar o período colonial. Porque começa no século XV com o infante D. Henrique. O Brasil está muito à frente na investigação sobre essas coisas e os historiadores brasileiros têm publicado obras muito importantes a partir dos nossos arquivos, onde há muita coisa por descobrir mas muita tem sido trabalhada e publicada. Só não sabe quem não quiser.

Escreveu uma carta, que se transformou em petição, em reação às declarações do PR no antigo entreposto de escravos de Gorée, e ao facto de este ter dito que o marquês de Pombal fez um decreto em 1761 a abolir a escravatura na metrópole por "humanismo". Na carta diz que se tem de se reconhecer o reflexo da escravatura e do colonialismo no presente. Mas acha-se que é algo que aconteceu há muito tempo, está ultrapassado.

Não, não foi há muito tempo, foi há muito pouco. São muito poucas as famílias portuguesas que não têm um envolvimento direto ou indireto com o trabalho forçado, por terem tido familiares nas colónias.

O seu bisavô provavelmente teve trabalhadores forçados.

Não me surpreende, atendendo ao testamento dele. E temos de pensar na quantidade enorme de trabalhadores portugueses que foram para o Brasil. E que a ficção portuguesa da época retrata: Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e muitos mais.

Está a trabalhar precisamente isso.

Sim, estou a escrever um livro sobre o sublime africano em Eça. E o que é o sublime? Duas coisas: encarar a África como um elemento do sublime, que exalta e ao mesmo tempo não permite o discurso, e por outro lado a sublimação. No sentido psicanalítico do termo, aquilo de que não se fala, mas que é motor de discurso, de trauma. E acho que a obra do Eça é um veículo privilegiado para estudar essa dimensão dupla. A África como fonte de maravilhamento, por causa da sua paisagem natural, como desafio enorme ao projeto colonial, que só avançou com a invenção do caminho-de-ferro e os progressos na medicina. Só no século XIX é que os europeus conseguiram penetrar no continente africano. Os portugueses entraram em África no século XV, porque é que só foi subjugada no fim do século XIX? As pessoas esquecem essa parte da história. E Eça de Queirós retrata a burguesia lisboeta como tendo uma má consciência sobre isso e atitudes hipócritas.

Como está a ser acolhida essa linha de investigação?

Fiz uma apresentação num congresso no ano passado e só tive reações de colegas norte-americanos e brasileiros. Do lado português nada.

Diria que tudo o que remeta para a questão raça é em Portugal...

Tabu. Perdem a compostura, toca num nervo. E há que ir por ali. É onde está a ferida. E dá para ver pelos artigos de opinião que têm saído a propósito da questão de Gorée: houve artigos que pareciam saídos do século XIX. Há pouco falava de ter acordado nos EUA num país diferente. E acho que os portugueses há muito que andam a viver num filme que não tem nada que ver com a realidade histórica. E obviamente o Estado Novo tem uma responsabilidade muito grande na manufatura desse filme mas ele vem de muito antes. E claro que este filme em que os portugueses vivem é até certo ponto compreensível porque Portugal e em menor grau a Espanha foram objeto de discriminação por parte da Europa do Norte. Aliás o lusotropicalismo, a crença de que somos colonialistas "humanos", passe o oxímoro, é um discurso defensivo. Gostava de viver num país que tivesse uma forma mais adulta de lidar com a sua história.

Mas ainda se formam pessoas na escola a acreditar que Portugal, o país que mais traficou, foi o primeiro a abolir a escravatura; que em vez de ser o último a acabar com o trabalho forçado é o herói do humanismo.

As pessoas não sabem. As pessoas não sabem que o povoamento intensivo em Angola e Moçambique começou no pós-Segunda Guerra Mundial. Estão convencidas de que os portugueses controlaram todo o continente africano durante 500 anos. A política portuguesa no pós-25 de Abril é responsável em grande parte por isso como é o sistema de ensino - nada disso é inocente. A suposta neutralidade em relação à raça é uma ficção, uma ficção muito conveniente para o Estado continuar a exercer discriminação. A manutenção deste tipo de discurso só é possível porque a maioria da população é ignorante em relação à história.

Defende que deve haver reparações.

A reparação não tem de assumir uma forma monetária - até porque ia-se pagar a quem, aos países? Há outras formas. A lei da nacionalidade é a primeira, e precisamos de ação afirmativa. Há pessoas que acham que porque temos uma ministra da Justiça negra o problema está todo resolvido. E vem depois vem o discurso sobre o mérito. A questão é que quem nasceu num bairro da periferia de Lisboa e é negro muito dificilmente chegará à posição de ministra, como a própria já disse. Ela assume que as pessoas negras são discriminadas. Mas por parte da população branca não há consciência de que os negros não têm acesso à cidadania. As pessoas pensam "não há negros nas universidades porque nunca se esforçaram para lá chegar" ou "há mais negros nas prisões porque são bandidos". Mas basta olhar para o Brasil e ver a evolução que houve desde que se introduziram quotas raciais nas universidades. De repente há alunos negros nas universidades, há professores universitários negros, e a mesma coisa aconteceria aqui.

São racismos diferentes, o americano e o português?

O racismo é todo igual. Porque é um preconceito com maior ou menor poder. Mas manifesta-se de formas distintas. E os dois países têm histórias distintas. Há discriminação racial em Portugal mas não quer dizer que seja um país segregado. Obviamente que se as comunidades negras na sua maioria vivem na periferia, em determinadas condições, isso é segregação. Mas a lei não segrega. Fê-lo nas colónias mas a inexistência de uma história de segregação na metrópole facilita muito este discurso lusotropicalista, a ideia de que temos uma neutralidade em relação à raça. E há pessoas com educação superior que acreditam nisso. A cultura segregacionista americana permitiu à comunidade negra um grau de autoconsciência muito maior.

Há muitas análises que consideram que a eleição de Trump resulta, entre outros fatores, da reação de rejeição face a um primeiro presidente negro e a movimentos de reivindicação muito fortes como o Black Lives Matter. Será que em Portugal a falta de consciência do racismo se deve em parte ao silêncio e falta de reivindicação da comunidade negra?

Já houve várias pessoas na comunidade negra em Portugal que perceberam que têm de se chegar à frente. E estou perfeitamente convencido, face ao que vejo em caixas de comentários e não só, que este país é uma seara à espera de ser incendiada. Basta que a extrema-direita se organize ou que, num cenário potencialmente mais plausível, como percebemos nas últimas semanas, o PSD conquiste esse terreno eleitoral, como os republicanos fizeram com Trump - e foi McCain, não esqueçamos, que abriu essa porta com o convite a Sarah Palin para sua vice, em 2008. Creio que o racismo aqui não é tão subtil como estamos habituados a pensar. As pessoas dizem coisas nas caixas de comentários que não diriam em público até terem uma licença para o fazer. Porque há qualquer coisa nos meios eletrónicos que faz as pessoas pensarem que aquilo não é público, algo as faz sentir à vontade para dizerem as coisas mais escabrosas. E é assustador.

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