"Hillary é uma mulher de armas. Se for eleita será histórico"

Almoço com Mariana Abrantes de Sousa
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Sentamo-nos na esplanada do Ingrediente, um restaurante no Alto de Algés com vista para o Tejo, e a luso-americana Mariana Abrantes de Sousa começa por alertar: "Vivi muitos anos na América. Vão-me sair frases em inglês." Diz isto a sorrir e sem vestígio do sotaque que poderia ter ganho em São Francisco ou Nova Iorque, as cidades onde viveu, desde que emigrou aos 13 anos para estudar, só regressando duas décadas depois. Presidente do American Club, economista , aceitou conversar sobre as presidenciais que opõem Donald Trump a Hillary Clinton, e mesmo que não diga em quem votou (já o fez, por correspondência), que insista que "o voto é secreto e na América ninguém pergunta", a sua análise dá-nos pistas: "Trump tem conversa de adolescente mas fala ao coração de uma América esquecida", enquanto "Hillary é uma mulher de armas. Se for eleita será histórico".

Mulher de armas é epiteto que se aplica a Mariana. Combinamos que pode ser este o tratamento durante o almoço. Explica que usa o nome profissional Mariana Abrantes de Sousa, mas que se costuma apresentar só com o primeiro apelido (o segundo era do marido, o economista Alfredo de Sousa, de quem é viúva há 22 anos). Na mesa está já um pratinho de azeitonas, que a convidada debica, e duas nozes de manteiga de ervas, que barro em torradinhas. É enquanto esperamos pela oportunidade de pedir o prato que Mariana me traça a história da sua vida, sobretudo como é que uma beirã acaba a estudar na Califórnia: "Nasci em Coimbra, em fevereiro de 1952, no hospital, mas fui criada em Beijós, Carregal do Sal. Lá vivi até aos 13 anos, quando fui para os Estados Unidos com uns tios que tinham emigrado nos anos 1920. Eu era a mais nova de dez filhos. E acabei por ir viver com uma prima minha 23 anos mais velha, nascida na América, e que era professora. Andei num liceu nos subúrbios de São Francisco e depois em Berkeley." Escolheu estudar Economia e uma das razões "foi para tentar perceber porque, apesar do clima mediterrânico, de ser tão igual a Portugal, a Califórnia era rica e o nosso país pobre", conta. Pergunto se chegou a uma resposta? "Ainda tento perceber. Nunca é uma causa só. Aliás, nunca existe uma causa única para explicar algo. Por exemplo, porque arde a floresta portuguesa? Uns dizem que é por causa do despovoamento do Interior, outros porque não há escoamento da biomassa, outros ainda que é culpa dos incendiários. Estão todos certos. E haverá mais causas. Só se resolve combatendo todas."

Mariana gosta de factos e de números. Diz que é uma mulher "muito prática, por isso nunca me interessei muito pelo doutoramento". Foi, porém, sempre aluna brilhante. Ganhou uma bolsa para tirar um mestrado de Políticas Públicas em Princeton, logo depois de acabar a licenciatura em Berkeley. Mostra-me uma folha com gráficos vários, incluindo as pirâmides etárias de África e da Europa, esta última "mais uma jarra". E, tal como tinha alertado logo no início do almoço, sai-lhe uma frase em inglês: "A picture worth a thousand words, costumam dizer. Pois eu digo que não são só as imagens, também os números valem mil palavras." E falamos da crise demográfica na Europa, dos refugiados e da imigração ilegal e de como os políticos não resistem à tentação do discurso populista em vez de procurar saídas. Recorda que ela própria teve de emigrar para fazer os estudos e hoje sente pertencer a dois países, identificando-se "mais com os Estados Unidos nuns aspetos, mais com Portugal noutros".

É hora de escolher o prato principal, depois de umas ovas fritas de entrada: Mariana pede bacalhau à Gomes de Sá, eu prefiro o polvo à lagareiro. Bebemos água. Pergunto à economista se costuma beber vinho. "Pouco. Sou de beber um copo por semana. E nesta já tive direito. E a castanhas e jeropiga", conta a rir-se, lembrando uma ida à aldeia beirã, onde tem uns pequenos terrenos, nos quais plantou castanheiros e oliveiras. Percebe-se que além de ser uma mulher com os pés na terra está ligada à terra. "Quando bebo vinho, prefiro Dão, claro."

Voltamos ao tema América. Conta que em Berkeley apanhou ainda com os protestos contra a Guerra do Vietname. E que também se lembra bem do Watergate e de como a professora em casa de quem vivia se recusava a acreditar que o presidente Richard Nixon tinha feito algo de ilegal: "Eu dava apoio a uma professora deficiente em troca de usar um quarto na casa dela. Era uma mulher brilhante, que em criança sofreu uma doença muito grave. Todos os dias vinham uns estudantes daqueles fortes buscá-la para a levar à escola de carro. Depois traziam-na. Eu jantava com ela e víamos as notícias juntas e lembro-me de como ela não acreditava nas acusações a Nixon. Era do distrito eleitoral dele."

Quando Mariana chegou aos Estados Unidos, Lyndon Johnson era o presidente. Seguiram-se Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter e Ronald Reagan. Confessa que desde que obteve a dupla cidadania passou a votar, mas "nunca automaticamente". Olha sempre com atenção para o boletim, que costuma ser complexo, com candidatos a presidente, a congressista, a mayor, e admite que votou já "ocasionalmente num ou noutro partido. O meu voto não está cativo".

Terminados os estudos em Princeton, começa a carreira. E logo num gigante da banca, o Chase Manhattan Bank. "Estávamos em 1975 e os excedentes em dólares dos países árabes petrolíferos eram depositados nos bancos americanos que os investiam na América Latina. Como falava português e espanhol puseram-me no departamento de crédito a avaliar o risco-país." Passou a viver em Nova Iorque, depois em Nova Jérsia, "porque as casas eram mais baratas e ficava perto de Manhattan, do outro lado do rio Hudson". Por isso hoje vota, à distância, como residente de Nova Jérsia. Pousa o garfo e a faca e procura mais uma folha com gráficos. Desta vez é o peso eleitoral de cada um dos 50 estados e de como os americanos no exterior valeriam tanto como o Colorado se fossem considerados um círculo.

O regresso a Portugal no fim dos estudos não foi sequer uma hipótese. "Acompanhava a atualidade portuguesa e sabia que o país tinha muito desemprego, havia crise económica", conta. Mas se não veio em 1975, regressou de vez em 1988. As razões, explica, era a mãe cada vez mais frágil e também o ter percebido, durante uma visita a Portugal, que o clima económica tinha melhorado e que se via anúncios nos jornais a pedir trabalhadores. Voltamos a falar de economia, de sair da crise, e de como as nossas empresas têm de exportar porque o mercado nacional é pequeno. E, de novo, uma frase em inglês: "Sales cure all", ou seja, "as vendas curam tudo", como dizem os americanos.

Conta que quando regressou teve um certo choque cultural. Por exemplo, tentava marcar reuniões e as pessoas nem sequer devolviam a chamada, o que era "impensável nos Estados Unidos". Alfredo de Sousa, professor na Universidade Nova de Lisboa, foi uma exceção. Deixava sempre indicações à telefonista sobre a que horas estava contactável e em que número. Mariana acabou por conhecer o futuro marido não nas instalações da universidade, mas num escritório onde montava a Companhia Portuguesa de Rating. "Ainda me recordo dele a instalar os computadores", conta. Morreu em 1994 num acidente.

Hoje, Mariana faz consultadoria internacional. É especialista em parcerias público-privadas e financiamento ao desenvolvimento. E tem um currículo impressionante: além do Chase Manhattan, trabalhou no Banco Europeu de Investimento (no Luxemburgo, "mas tive de deixar, porque o Alfredo não estava disponível para lá se mudar quando casássemos", diz, a sorrir), na McKinsey International, no Banco Português do Atlântico e no ABN AMRO-Portugal. Foi também controladora financeira nos ministérios dos Transportes e da Saúde, entre 2006 e 2010, reportando às Finanças.

Saltamos as sobremesas e pedimos café. Depois desta referência a ter trabalhado para o governo, pergunto se alguma vez teve atividade partidária. Responde que não, que não a atrai. Mas que sente vontade de intervir na sociedade, seja como economista seja como cidadã. Por isso tem os blogues PPP Lusofonia e beijozxxi, integra a Soroptimist Portugal (uma espécie de Rotários só para mulheres) e é tesoureira da Sousa Mendes Foundation (dos Estados Unidos), além de presidente do American Club de Portugal.

Regressamos à política americana. Mariana não gosta quando ouve falar mal dos Estados Unidos. "Têm coisas más e coisas boas, como qualquer país. Mas têm de ter muitas coisas boas mesmo, já que são tão bem-sucedidos." Sobre estas eleições, em que o favoritismo de Hillary no campo democrata se comprovou apesar do desafio de Bernie Sanders, mas em que os republicanos se deixaram surpreender nas primárias e têm agora Trump como candidato, a economista admite ter feito um esforço para estar a par. Conta que há uns meses, para se preparar para uma entrevista, esteve a ver vários vídeos de Trump: "Tinham todos três ou quatro minutos. E sempre o mesmo formato. Os primeiros 30 segundos era a falar de barbaridades, tipo excluir os imigrantes. Mas depois, mesmo que ainda não tivesse desligado, ouvia Trump a falar do desemprego de longa duração, de cidades que já tinham tido tempos bons mas agora viviam os maus, como Cleveland. E isto fez-me pensar nos riscos que é a democracia ignorar os perdedores da globalização. É que se em Portugal esses votam com os pés, nos Estados Unidos votam mesmo."

Que Trump consiga apelar a muitos americanos "é assustador", acrescenta a luso-americana. "Não está preparado para ser presidente. Aproveitou-se da notoriedade para ganhar apoio. E muitos republicanos tardaram demasiado a afastar-se. Ainda no outro dia ouvi a Condoleezza Rice a dizer que era contra Trump. Não percebo porque só agora." Além de impreparado, que seja sexista e xenófobo também a incomoda.

Já sobre Hillary, realça que se trata de "uma mulher muito inteligente, o que nem sempre é fácil. Tem uma capacidade de assustar muita gente. Mas tem sido uma líder desde a universidade. E possui uma visão estratégica. O problema é que para ganhar não é preciso o mesmo que para governar". Insisto se não quer mesmo dizer em quem votou para as presidenciais de dia 8. "O voto é secreto", responde, com um sorriso.

Pedimos a conta e preparamo-nos para nos despedir. Chega um licor de menta, oferta da casa (quando chega a conta, descubro que também as entradas foram uma gentileza). Mariana elogia o restaurante, diz que almoça aqui várias vezes, outras vezes compra-lhes comida para levar para casa, ali perto. "Gosto do comércio de proximidade. Nos Estados Unidos é comum o zoning, zonas bem separadas para habitação e comércio. É um daqueles casos em que prefiro Portugal à América. Mas temos de dar o nosso contributo para defender estes restaurantes de bairro", salienta. É a tal "citizenship", ou cidadania, palavra que ouviu pela primeira vez quando chegou à América. Outra foi "leadership", liderança.

Em 2017, o American Club celebra 70 anos. E prepara uma grande conferência em outubro com os American Club da Europa. Entretanto, continuará a promover os "american values", diz Mariana, e os almoços-debate. Há dias foi Catarina Albuquerque a convidada, a portuguesa que foi a primeira relatora da ONU para a Água. No dia 9, acontecerá um jantar, com Nicholas Kralev, um politólogo americano, que vai analisar o resultado das eleições da véspera. Falará certamente da clivagem entre democratas e republicanos, que a presidente do American Club considera um dos grandes problemas dos Estados Unidos.

Restaurante INGREDIENTE

› Entradas

› Ovas fritas

› Duas águas

› Bacalhau à Gomes de Sá

› Polvo à lagareiro

› Dois cafés

› Dois licores de menta

Total: 19,60 euros

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