20 milhões em risco de fome num "mundo de abundância"

ONU precisa de 4,2 mil milhões de euros até final do mês para evitar catástrofe em 4 países: Iémen, Nigéria, Somália e Sudão do Sul.
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Todos os anos, um terço dos alimentos produzidos para consumo humano é perdido ou desperdiçado. Estamos a falar de 1,3 mil milhões de alimentos que não chegam às populações que mais precisam deles. É o caso de 20 milhões de pessoas em quatro países - Iémen, Nigéria, Somália e Sudão do Sul - que, se não receberem ajuda imediata, ficam em risco de morte nos próximos seis meses.

Guerra, alterações climáticas e pressão sobre os recursos naturais; são muitos os elementos que se conjugam para deixar estes países mais vulneráveis, mesmo num "mundo de abundância", como o descreveu o secretário-geral da ONU. António Guterres lembrou esta semana que "não há desculpas para a inação", sobretudo quando se trata de "uma tragédia que ainda pode ser travada a tempo de evitar que se transforme numa catástrofe".

Os alertas da ONU vieram fazer soar os alarmes e chamar a atenção para um problema que parecia fazer parte do passado. Em meados dos anos 80, as imagens de crianças esqueléticas na Etiópia alertavam o mundo para uma fome que faria um milhão de mortos naquele país africano. Na década seguinte, estima-se que 3,5 milhões de norte-coreanos tenham morrido por falta de alimentos. O regime deu entretanto alguma liberdade aos agricultores para evitar o colapso alimentar. A República Popular do Congo, entre 1998 e 2004, viu 3,8 milhões de pessoas morrer à fome. E mais recentemente, em 2011, foi a vez da Somália ver morrer de fome 260 mil pessoas.

"Todos os dias, por esse mundo fora há um número imenso de mulheres e homens que não conseguem dar aos seus filhos uma alimentação nutritiva. Num mundo que produz o suficiente para alimentar a sua população, há 795 milhões de pessoas que se deitam diariamente com o estômago vazio", lamenta Madalena Marçal Grilo. Em declarações ao DN, a diretora executiva da UNICEF Portugal explica que "erradicar a fome e a má nutrição é um dos grandes desafios do nosso tempo, não apenas pelas consequências que uma alimentação insuficiente ou pobre em nutrientes provoca - perda de vidas humanas, sofrimento, saúde precária - como pela forma como afeta o progresso em muitas outras áreas como a educação e o emprego e em última análise no desenvolvimento dos países".

Para a ONU declarar oficialmente fome num país, é preciso que pelo menos 20% da população tenha acesso a menos de 2000 calorias de alimentos por dia, que mais de 30% das crianças sofram de malnutrição e que se registem diariamente duas mortes por cada dez mil pessoas ou a morte de quatro crianças em cada dez mil.

Com 1,4 milhões de crianças ameaçadas de inanição só no Sudão do Sul, para evitar a catástrofe, a ONU diz precisar de 4,2 mil milhões de euros até finais deste mês - um valor equivalente, por exemplo, aos lucros da cadeia de lojas sueca Ikea no ano passado. "Apesar de alguns compromissos generosos, até agora só recebemos 90 milhões", admitiu Guterres. Para o secretário-geral da ONU "apesar de ainda estarmos no início do ano, estes são números muito preocupantes".

E com os Estados Unidos a serem os maiores doadores da ONU - em 2014 contribuíram com mais de 32 mil milhões de dólares (30 mil milhões de euros) para as Nações Unidas, 5,9 mil milhões dos quais dedicados à ajuda humanitária -, a situação pode vir a piorar. Afinal, o novo presidente Donald Trump já disse que para financiar o aumento do orçamento da Defesa, irá cortar na ajuda externa. Para Francisco Sarmento, chefe do Escritório de Informação da FAO (a agência da ONU para a alimentação e agricultura ) em Portugal e junto da CPLP, com Trump "as coisas não serão melhores neste aspeto", mas deixa uma nota otimista: "não menosprezemos as instituições, a democracia norte-americana e o sistema multilateral. Apesar de estarem sobre pressão , existe alguma margem de reação", garantiu ao DN.

Cenário negro

O último relatório da FAO, recorda que até 2050, a população mundial - hoje pouco acima dos sete mil milhões - deverá chegar aos dez mil milhões. Destes, dois terços vão viver em cidades e áreas urbanas. Ora, o crescimento populacional vai obrigar o mundo a produzir mais 50% de alimentos para dar resposta à procura. A agência da ONU tem como objetivo acabar com a fome até 2030, mas ao ritmo de produção atual, por essa altura ainda haverá 637 mil milhões de pessoas, sobretudo na África subsariana e no Sul da Ásia, que não terão alimentos suficientes.

Com os combates e a seca a afetarem a produção agrícola no Iémen, Nigéria, Somália e Sudão do Sul, mas também noutras regiões como o Afeganistão, Iraque, Síria, Burundi, RD Congo ou República Centro-Africana , o relatório da FAO dá, contudo, conta da recuperação da produção de cereais na América Central e na Ásia em 2016.

Em zonas remotas e de difícil acesso - no Sudão do Sul, por exemplo, existem apenas 200 km de estradas alcatroadas, a distribuição da ajuda humanitária é o maior desafio. "Apesar das dificuldades de acesso e da insegurança, a UNICEF está no terreno em todos estes países a trabalhar com outras agências da ONU e muitos parceiros locais", explica Madalena Marçal Grilo. A diretora executiva da UNICEF Portugal conta como "por exemplo, no Sudão do Sul [...] a UNICEF e o PAM [Programa Alimentar Mundial] estão a trabalhar em conjunto para chegar às populações mais duramente atingidas com missões de resposta rápida que, para além da distribuição de alimentos incluem tratamento de crianças gravemente mal nutridas, cuidados de saúde, vacinação, distribuição de água e registo e apoio a crianças que estão sozinhas".

Perante o atual cenário, as organizações internacionais estão empenhadas em evitar a repetição do cenário de 2011. Na altura, quando a ONU decretou a fome no Corno de África, em julho, já 260 mil pessoas tinham morrido. "Quando declaramos a fome, já muitas vidas se perderam", afirmou à Reuters Arif Husain. E desta vez o economista-chefe do PAM não quer esperar até já ser tarde demais.

Já Peter Smerdon, diretor-adjunto do Programa Alimentar Mundial, explicou à France 24 que para fazer chegar a ajuda ao terreno, a agência procura sempre primeiro dialogar com as várias partes em conflito, mas "nem sempre é fácil e por vezes "atravessar as linhas de combate é complicado". Nesses casos, o PAM pode "lançar alimentos do ar e temos equipas rápidas que vão de helicóptero até às zonas isoladas para levar bens alimentares e outros". Há pois meios para lutar contra a fome mas "é difícil, é caro e é preciso muito trabalho para chegar a tantas pessoas em risco", admite Peter Smerdon na mesma entrevista.

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