"A Rússia fez o que está a fazer por causa das nossas violações do direito internacional"

Especialista em Direito Penal Internacional e advogado do TPI, Kai Ambos falou ao DN da dificuldade de aplicar o mandado de captura emitido pelos juízes de Haia contra Vladimir Putin por chocar com a imunidade inerente a um chefe de Estado. Professor na Universidade de Göttingen e professor associado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o alemão abordou ainda o assassínio de Bin Laden que considera "ilegal" e explicou porque Srebrenica é o único genocídio julgado e provado aos olhos da lei internacional.
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Em março, os juízes do Tribunal Penal Internacional emitiram um mandado de captura contra Vladimir Putin. O presidente entretanto ainda não saiu da Rússia, mas se for à cimeira dos BRICS em agosto, em Joanesburgo, é expectável que seja mesmo detido e enviado para Haia?
É uma pergunta muito complexa. Existe essa possibilidade. Um Estado que faz parte do Estatuto de Roma do TPI, como Portugal ou como a África do Sul, tem obrigação de implementar ordens do tribunal, como um mandado de captura. Por princípio, Portugal, Alemanha, Espanha, África do Sul, etc, deveriam deter o senhor Putin. Este é o primeiro nível. Mais complexo: o problema é a imunidade de um chefe do Estado. A imunidade estatal, que é a imunidade mais forte. Putin não é somente um político qualquer, ele é o chefe do Estado e representa a Rússia. Então, capturar um chefe do Estado viola o direito do Estado, não é só o direito de Putin, mas também o do Estado que representa. Por isso no direito internacional há outro princípio que é o da imunidade absoluta da tríade: chefe do Estado, primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Ou seja, no caso russo, Putin, Mikhail Mishustin e Sergei Lavrov. Este é o conflito. E há muitas discussões entre os internacionalistas sobre como o resolver.

No fundo, a dúvida é, desses dois princípios, qual prevalece?
Exatamente. E depende muito dos tribunais. Se falar com um internacionalista do Tribunal Internacional de Justiça, como tribunal global em Haia, ele será mais a favor de a imunidade prevalecer, enquanto que os tribunais penais, como o TPI, ou o TPI para a antiga Jugoslávia, são mais a favor da não imunidade em caso de crimes internacionais. É um conflito, mas independentemente da questão legal, de qualquer forma, como vemos na prática, a preocupação da África do Sul - inclusive a viagem até à Ucrânia e depois à Rússia do presidente Ramaphosa com uma delegação de líderes africanos - é que sabe que este é um problema. Na África do Sul temos o governo do ANC [Congresso Nacional Africano] mas mesmo que este não queira agir, porque é amigo da Rússia, a oposição e o poder judicial pressionam. A questão já se colocou antes com [Omar] Al-Bashir [ex-presidente do Sudão]. Quando este viajou até à África do Sul, uma ONG solicitou a um juiz sul-africano um mandado de captura, e este emitiu a ordem, mas Al-Bashir já tinha ido embora. Na África do Sul, como existe um poder judicial independente, nunca existe segurança para uma pessoa procurada pela justiça internacional.

Têm surgido notícias de que a África do Sul estaria a pensar passar a organização da cimeira para outros dos membros dos BRICS como a China ou a Índia que não são parte do TPI. Que consequências tem para a legitimidade e eficácia do tribunal que potências como EUA, Rússia, China ou Índia não façam parte?
Temos de distinguir entre estes países - os EUA com Bill Clinton chegaram a ser signatários, mas depois retirou com Bush e a Rússia fez o mesmo, nunca tendo ratificado o tribunal. O que é facto é que nenhum deles é um Estado parte do TPI e, nesse sentido, como China, Índia ou Israel, estão de fora. E são Estados importantes, mas em termos de números temos 123 países parte do TPI. E temos Estados importantes como Brasil, Canadá, Alemanha, França, etc. Existe esse problema com estas potências. E não é sem consequências, como vemos no caso do mandado de captura de Putin. Mesmo que a Rússia diga que não aceita esta decisão, o que é facto é que ele não pode viajar para os 123 estados parte do TPI, não pode viajar na União Europeia, nem para o Canadá, nem para vários Estados africanos, que são talvez mais amistosos com a Rússia, mas mesmo com eles isso criaria um problema. Tem um efeito prático, limitador. Em direito internacional, também em questões da proteção do clima, temos este problema: é sempre um sistema fraco. Não é como um sistema nacional, como o português ou o alemão.

É difícil ter unanimidade de todos os países do mundo...
Sim. É um problema de aplicação que temos. Mas este também existe nos nossos próprios Estados. Nem todos seguem o modelo alemão ou suíço - que são estados onde a justiça funciona bem. Mas em Estados como Angola ou Brasil às vezes não funciona tão bem. E mesmo na Alemanha por vezes há problemas, há fugas aos impostos, etc. É relativo.

Falamos de o TPI investigar os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia, mas o tribunal também vai investigar os crimes ucranianos?
Formalmente, a competência é sobre o território da Ucrânia - cada crime internacional ali cometido, seja crime de guerra, agressão, genocídio, pode ser investigado. Inclusive crimes do exército ucraniano, que temos alguns. Claro que em termos de números, vamos ter mais crimes russos. Mas para o procurador Karim Khan é muito importante enfatizar a independência do seu trabalho. Por isso ele não participa formalmente numa joint investigation team criada na União Europeia, com a Polónia, os Estados Bálticos. É um mecanismo particular que temos na UE com o Eurojust e o Ministério Público do TPI não é participante formal nisto por uma questão de objetividade. Porque se trata de Estados da Europa oriental que são mais claramente anti-russos.

Falava há pouco da delegação africana que foi a Kiev e depois a Moscovo, o presidente brasileiro Lula da Silva também esteve no Vaticano para tentar encontrar uma solução para a paz. Como académico e estudioso, vê algum fim possível para este conflito, sobretudo enquanto Putin estiver no poder?
Há aqui vários níveis diferentes. Um é o fim do conflito armado. E existem várias posições, inclusive na Alemanha. É uma questão de em que condições é que vai terminar, o que é aceitável para a Ucrânia? Até hoje os ucranianos, o presidente Zelensky, sempre disseram que as tropas russas têm de retirar do seu território. É compreensível, é o seu país.

Sim, mas retiram de onde? Também da Crimeia?
Tem de haver um compromisso. E nós, como União Europeia, não podemos ser intermediários. E os EUA ainda menos. Os únicos intermediários possíveis são países como o Brasil, como a China, como os africanos. Porque para os russos são considerados neutral. E os russos têm mais interesse. Para Moscovo este é um conflito contra o Ocidente, contra nós. Por isso nós não somos mediadores possíveis porque não somos neutros. Para mim, uma delegação africana é muito importante. Essa, sim, é pressão sobre a Rússia. Tal como a China. Esse é o nível diplomático. Outro nível, é a justiça. E como sabe na Alemanha ainda andamos a investigar os tempos do nacional-socialismo - pessoas com 80, 85, 90 anos. O braço da justiça é longo. Demora tempo, temos de ser pacientes. O jornalismo vive do dia a dia, do imediato. Mas na justiça os processos são muito demorados e o facto de haver um mandado de captura - contra Putin, contra Al-Bashir -, essa ordem fica, não vai desaparecer. Não sabemos o que vai acontecer no futuro. Talvez Putin se demita, talvez haja uma revolução. Como aconteceu no Sudão com Al-Bashir. É uma questão de longo fôlego. Nesse sentido, eu sou mais otimista e acho que faz sentido fazer estas investigações.

Em maio passado vimos o último julgamento ligado ao TPI para a ex-Jugoslávia. Olhando para trás, que balanço faz do trabalho deste tribunal?
Depende da perspetiva. O problema que temos em todos os tribunais - inclusive tribunal para o Kosovo, em que sou juiz - é o do efeito no país. E desta perspetiva a avaliação ao TPI para a ex-Jugoslávia pode ser negativa. Isso vê-se no facto de na Sérvia, um dos casos mais dramáticos, ainda haver muito apoio ao atual presidente, Aleksandar Vucic, que foi braço direito de Milosevic e que não aceita o genocídio em Srebrenica. Esse foi o único julgamento na história de um genocídio. O único que foi julgado e chegou a um veredicto firme. Mas na Sérvia, grande parte da população não aceita. Nesse sentido, podemos questionar-nos para quê fazer isto se depois, no local, não temos efeito na população que é o principal destinatário desta decisão. Esta é uma perspetiva de tudo isto e a lição a tirar é: alcance, alcance, alcance. E alguns países, como a Suíça, pagam para que continuemos com este trabalho. Se nós, no tribunal para o Kosovo, decidirmos fazer algo em Pristina, a Suíça paga porque sabe que o importante é convencer as pessoas no terreno e não em Lisboa ou em Berlim. Se olhar para os conflitos que temos atualmente, no Norte do Kosovo, parece que toda esta justiça internacional não teve qualquer efeito - o nacionalismo continua vivo. Outra parte é mais universal e tem a ver com o desenvolvimento do Direito. O facto de termos muitos casos no Tribunal Internacional de Justiça neste momento - sobretudo se comparado com há 30 anos, nos tempos da Guerra Fria, isso é muito positivo. Só no caso da Rússia temos cinco processos pendentes no TIJ - Ucrânia-Rússia, um outro em que vários países da UE entraram como parte civil, etc. Há uma maior procura da justiça internacional. E temos todos estes tribunais. Desde os anos 1990 que o TPI tem muito trabalho, basta ir à página web dele para ver. O procurador Khan foi agora à Colômbia e à Venezuela, onde abriu um escritório. O que é incrível se pensarmor que Nicolás Maduro é totalmente um ditador, que não cooperou sequer com a comissão de investigação da ONU. Nem os deixou entrar no país. Mas o TPI sim. Khan esteve no palácio da República em Caracas com Maduro. O presidente venezuelano recebe Khan mas não a comissão do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. São efeitos por vezes não tão visíveis.

Mas para o cidadão comum, o que nos chega do trabalho destes tribunais são os efeitos visíveis. São os julgamentos de Mladic e Karadzic, com eles sentados frente aos juízes...
Isso é a superfície. É superficial. Na minha experiência, eu participei na Colômbia nas negociações entre o governo de Santos e as FARC e naquele país, um fator importante nos últimos 20 anos, era a ameaça da extradição para os Estados Unidos. Basta ver na Netflix, a história do Pablo Escobar. Outro factor foi o TPI. Quando este foi criado, em 2002, em cada negociação na Colômbia com os paramilitares e com as FARC, na mesa das negociações surgiu a questão: o que fazemos com o TPI. E essa é uma questão interna, uma questão colombiana, não é nada visível de fora. Num processo de paz em qualquer país hoje - por exemplo na República Centro-Africana - não é possível deixar a justiça internacional de fora, deixar o TPI de fora. Inclusive em como o do Sudão em 2005. Esse factor soft do direito penal internacional, do TPI, é muito subestimado porque não é visível.

Falou há pouco do genocídio de Srebrenica. Uma das posições que defende é que não se pode falar no genocídio dos arménios porque é quase impossível de provar...
Há 15 anos escrevi um artigo no Frankfurter Allgemeine Zeitung, que depois foi publicado até na Turquia, no qual defendia que, legalmente falando, não existia genocídio arménio. Ou pelo menos não temos provas suficientes. E muita gente me atacou na Europa. Sobretudo historiadores. Tivemos então uma discussão em torno do conceito de genocídio. Um historiador, um antropólogo tem um conceito diferente. Então de que conceito falamos? Do conceito legal ou do conceito de ciências políticas? O mesmo se passa agora com o conceito de apartheid. Em Israel e na Palestina temos conceitos populares de apartheid. Usa-se apartheid como conceito político. Fala-se em apartheid por causa da covid. Portanto, em primeiro lugar temos de definir o conceito. E, legalmente falando, se a Assembleia Nacional de França ou o Bundestag declaram que houve genocídio, isso não tem qualquer valor jurídico, é uma declaração política. Foi uma decisão do Parlamento, primeiro do francês e depois do alemão. Legalmente falando seria difícil provar que houve genocídio porque precisamos ter provas de que houve intenção de destruir um grupo. Para mim o caso que está mais perto do genocídio é o da Alemanha na Namíbia contra os povos herero e nama. No início do século XX, o exército alemão cercou estes povos e exterminou muitos elementos destas tribos. Para mim isso é mais claramente genocídio do que no caso da Arménia e Turquia. De qualquer forma é difícil porque é ex post facto, e não tivemos julgamentos como o de Srebrenica. Mas isso não significa que não podemos classificar alguns casos, mesmo anteriores à convenção de 1948, como genocídio. Mas é muito difícil, teríamos de fazer um estudo, com documentação.

Diria que hoje se usam palavras como apartheid ou genocídio de ânimo demasiado leve, demasiado facilmente? Até sobre a Ucrânia já se falou em genocídio...
Concordo plenamente. E é muito por culpa dos media. O tema do genocídio na Ucrânia foi primeiro lançado por Zelensky e depois circulou por diferentes media internacionais. E poucas pessoas fizeram a análise jurídica.

Em 2011 classificou o assassínio de Osama bin Laden como "ilegal e moralmente dúbio". Reafirmou o mesmo depois da morte de Ayman al-Zawahiri no ano passado. Matar um terrorista não justifica tudo em termos legais?
O problema é permitirmos que um Estado, qualquer Estado, sejam os EUA ou a Rússia, possa decidir sobre o destino de pessoas, decidir "eliminar este tipo", como eles dizem. Não são deuses, não lhes cabe tomar essa decisão, não é legítimo que um governo ou uma força militar decida sobre a vida das pessoas. Além dos efeitos secundários disso - temos um sem número de casos em que toda a família acaba assassinada, não é targeted killing, por vezes bombardeiam um casamento e matam toda a gente. Mas mesmo nos casos de assassínio seletivo, se um presidente decide eliminar alguém porque é um terrorista, quem é que controla este juízo. Devia caber a um tribunal, no mínimo a uma comissão, tomar tal decisão. Senão é o oeste selvagem, é uma situação de caos, de anarquia. Por tudo isto, a Rússia fez o que está a fazer. Por causa da nossa duplicidade moral e das nossas violações do direito internacional. O assassínio seletivo é um caso que, inclusive, aumentou com o presidente Obama. Mas os russos também fazem o mesmo. Os envenenamentos em Inglaterra. E com que autoridade moral vamos dizer aos russos que não podem agir assim, se nós fazemos o mesmo? Eu escrevi um livro sobre isto e há um ano questionei: porque é que os africanos não nos apoiam? Porque é que a Ásia não nos apoia? Porque nós não somos a comunidade internacional - na Alemanha todos falam na comunidade internacional, mas quem é? A NATO? São 30 países. O que vão dizer os africanos? Os asiáticos? Esse é um problema da nossa duplicidade de critérios, da nossa duplicidade moral.

É um bocado a ideia de que nós somos os bons e eles são os maus - por isso nós podemos fazer mas eles não...
Sim, um pouco isso. Os russos fazem coisas más, mas os americanos também. Isso não quer dizer que se eles fazem algo mal, os outros também podem. Temos de ser humildes. Não podemos falar dos nossos valores como valores universais. O nosso chanceler [Olaf Scholz] tem gerido isso bem. Mas é algo novo. Antes era a arrogância da Alemanha face a outros países, essa ideia de que somos civilizados e os outros não... Falamos em "países civilizados", em "mundo civilizado", mas a nossa missão civilizadora passou por matar muita gente. Portugal é exemplo disso.

Também é bastante crítico do Equador por ter dado asilo a Julian Assange na sua embaixada em Londres, no que definiu como uma "violação dos direitos humanos". É mais um caso em que a política se intrometeu na justiça?
Foi uma decisão do governo de Rafael Correa, que vive agora em Bruxelas exilado, mesmo se está a preparar o regresso. Mas quando Correa saiu do poder, esta questão do asilo de Assange foi essencial para a sua imagem internacional como defensor dos direitos humanos, da liberdade de imprensa. Que não defendeu no Equador! Foi uma questão muito política. E tive a oportunidade de falar com uma pessoa que trabalhou na embaixada do Equador em Madrid e que me disse que todas as embaixadas equatorianas sofreram com esta situação porque Londres tinha um custo enorme. Em segurança, etc. Então o governo reduziu os orçamentos das outras embaixadas para compensar. Para quem trabalhava na embaixada do Equador em Londres também era um problema diário: muitos jornalistas à porta, muita segurança, além de ter ali permanentemente uma pessoa, que recebia visita, etc. E isto ocultou um pouco a questão de fundo que era que a ordem de extradição da Suécia contra Assange tinha a ver com acusações de assédio sexuais e o facto é que o fundador da WikiLeaks nunca se apresentou à justiça sueca onde se podia ter defendido. No fim de contas, as acusações na Suécia caíram e resta apenas o caso dos EUA contra Assange. Mas o argumento para se refugiar na embaixada do Equador era um pouco uma teoria da conspiração: achava que os suecos o iam deportar para os EUA. O que legalmente não era possível. Se um país europeu entregar um suspeito a outro país europeu, esse não o pode despachar para outro país sem consentimento do primeiro. Mas a teoria não era essa.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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