Trump e Kim parte II. Nuclear de novo em cima da mesa entre otimismo e realismo

Depois de um primeiro encontro a 12 de junho em Singapura, o presidente dos Estados Unidos e o líder norte-coreano voltam a encontrar-se em Hanói, no Vietname, nos dias 27 e 28.
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Enviado à primeira cimeira entre o presidente americano e o líder norte-coreano, em Singapura, José Carlos Matias faz a antecipação do novo encontro, no Vietname, entre os dois dirigentes.

A questão do nuclear volta a estar em cima da mesa na cimeira de Hanói, depois de o encontro entre Donald Trump e Kim Jong-un, em junho, ter termina com muitas promessas vagas mas poucas medidas concretas.

De velho inimigo a aliado dos Estados Unidos na Ásia, o Vietname foi o país escolhido para receber o segundo encontro entre os dois líderes. Mesmo ausente da cimeira, a China já demonstrou que tem uma palavra a dizer sobre esta relação.

Desnuclearização
Era a desnuclearização a questão essencial na histórica cimeira de 12 de junho em Singapura entre Donald Trump e Kim Jong-un. Na altura, Kim comprometeu-se a trabalhar rumo a uma desnuclearização completa da Península Coreana. Contudo, a declaração conjunta emitida não referia mecanismos de verificação e passos concretos a serem dados, o que gerou ceticismo entre vários observadores. Certo é que o presidente norte-americano escrevia no Twitter, no dia seguinte à cimeira com o líder norte-coreano, que a Coreia do Norte já não constituía uma ameaça nuclear. Nesse mesmo mês, Trump anunciava que Pyongyang estava a desmantelar quatro dos maiores locais usados para testes balísticos, mas não foram reveladas provas desse movimento e o próprio Trump acabaria pouco depois por prolongar as sanções à Coreia do Norte. Um documento confidencial das Nações Unidas, tornado público no mês de agosto, revelava que o regime de Kim continuava a desenvolver o seu programa nuclear e a violar sanções internacionais através da transferência clandestina de armamento e combustível. Trump envia mais sinais contraditórios nesse verão. Primeiro afirma à Reuters que iria encontrar-se novamente com Kim, dizendo acreditar que Pyongyang tinha dado passos específicos rumo à desnuclearizacão; depois pede ao secretário de Estado Mike Pompeo para cancelar uma viagem prevista a Pyongyang, citando progressos insuficientes do lado norte-coreano.

O vaivém diplomático volta a intensificar-se e os presidentes das duas Coreias estão novamente lado a lado, na terceira cimeira entre Kim e o chefe do Estado sul-coreano Moon Jae-in a 19 e 20 de setembro. Pyongyang compromete-se a encerrar permanentemente o seu maior complexo nuclear em troca de ação recíproca, não especificada, por parte dos Estados Unidos.

Pompeo foi finalmente a Pyongyang e encontra-se com Kim, reafirmando que o regime norte-coreano tinha registado progressos significativos no longo processo de desnuclearização.

O desafio que se coloca agora, na cimeira de Hanói, é um roteiro específico para a desnuclearização, com datas e passos a dar, a par de um processo de verificação. Isso mesmo é salientado por Dennis Wilder, diretor para a Ásia Oriental do Conselho de Segurança Nacional durante a administração de George W. Bush. "É preciso que haja uma declaração muito mais substancial do que aquela que surgiu da primeira cimeira em Singapura", afirma à Rádio Voz da América.

Relação pessoal
Poderiam ser vistos como strange bedfellows (literalmente estranhos companheiros), mas pode dizer-se que a química entre Trump e Kim era patente desde a primeira hora - quando passearam, lado a lado, nos jardins do Capella Hotel, em Singapura. Nas primeiras declarações após a cimeira, Trump falava de um encontro honesto, direto e produtivo com Kim, que classificou de "muito talentoso", "muito inteligente", ou "muito bom negociador".

Menos de um ano antes, em setembro de 2017, perante a Assembleia Geral da ONU, o presidente norte-americano apelidara Kim de little rocket man, após uma troca de ameaças, com o líder norte-coreano a garantir ter mísseis capazes de atingir território norte-americano.

A relação pessoal ganhou contornos de cariz afetivo quando Kim enviou uma carta a Trump em setembro de 2018, classificada como "muito positiva, calorosa", pelo presidente norte-americano que, num comício com apoiantes, foi ao ponto de dizer que ele e Kim se "tinham apaixonado", após uma troca de cartas "excecionais". O tom foi acentuado em dezembro quando, durante um encontro com o presidente sul-coreano. Moon disse aos jornalistas que levava uma mensagem para entregar ao congénere do norte: "A mensagem é que o presidente Trump tem uma perspetiva muito favorável face ao presidente Kim e que ele gosta dele."

China: ausente, mas sempre presente
Mais uma vez a China não está presente diretamente na cimeira Trump-Kim, mas Pequim faz questão de manter centralidade neste processo. Recorde-se que, antes do encontro em Singapura, Kim tinha-se encontrado com o presidente chinês Xi Jinping por duas vezes na China. Além do mais, o líder norte-coreano viajou para a Singapura a bordo de um avião da Air China. O vizinho gigante tem pairado sempre sobre toda esta dinâmica entre Washington e Pyongyang que acontece em paralelo com as crescentes tensões comerciais e tecnológicas entre a China e os Estados Unidos.

E Kim voltou a estar com Xi semanas antes desta segunda cimeira, a 10 de janeiro deste ano. Ao todo os chefes de Estado da China e da Coreia do Norte encontraram-se por quatro vezes ao longo dos últimos 12 meses. O sinal dado é claro: Pequim quer desempenhar um papel-chave, mostrando que permanece o aliado estratégico da Coreia do Norte e que nenhuma acordo é possível sem a bênção chinesa.

Em declarações à Al Jazeera, um perito em questões nucleares do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy, com base em Pequim, sumariza a equação da China. "Enquanto a Coreia do Norte possuir armas nucleares, isso constitui desculpa para reforçar as suas capacidades militares e para os EUA reforçarem as suas alianças na região e para canalizarem sistemas de defensa antimísseis e outros ativos militares para a vizinhança da China", explicou.

Porquê Hanói?
Ainda há pouco mais de quatro décadas, o Vietname era palco daquela que foi talvez a mais traumática operação militar dos Estados Unidos da América no pós-Segunda Guerra Mundial. O mundo mudou e o Vietname é hoje um dos parceiros estratégicos de Washington no Sudeste Asiático, tendo as relações bilaterais vivido anos de intensificação, cimentadas na visita do então presidente dos Estados Unidos Barack Obama ao país em 2016.

Tal como a Coreia do Norte, o Vietname esteve envolvido numa guerra com os norte-americanos e possui um regime político de partido único comunista. Todavia, contrariamente a Pyongyang, Hanói abraçou um processo de reformas económicas e abertura ao exterior há quatro décadas - por volta da mesma altura em que o vizinho gigante, a China, também dava passos nesse sentido.

A capital vietnamita já tinha sido referida como possível palco para a primeira cimeira entre Trump e Kim, que acabou por ter lugar em junho, em Singapura. O encontro da próxima semana constitui assim uma oportunidade de afirmação diplomática e geopolítica.

Jornalista da Plataforma Media - Macau

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