Miguel Ventura Terra, a casa dele e a sinagoga de Lisboa
"O nosso porteiro, que é católico, está de folga", lança Ana Araújo, dando as boas vindas à Sinagoga de Lisboa, a partir do degrau na porta de entrada do edifício desenhado por Miguel Ventura Terra, justificando a necessidade de manter o portão fechado. A anfitriã, judia, fala para as cerca de 70 pessoas que se inscreveram junto Fórum Cidadania Lisboa para esta visita guiada ao templo e, logo a seguir, ao prédio na rua Alexandre Herculano ali mesmo ao lado, ambos projetados pelo arquiteto.
As portas abrem-se para assinalar o 150º aniversário do nascimento de Miguel Ventura Terra, nascido a 14 de julho de 1866 em Seixas, Caminha. O Largo do Rato está mais calmo do que é habitual, mas o grupo faz-se notar. "Tivemos muito mais inscrições do que imaginávamos", notava Paulo Ferrero, conferindo nas suas folhas A4 as presenças.
Os homens entram de kipah na sinagoga como ditam as normas da casa. Aberta ao culto desde 1904, a sinagoga de Lisboa é a assembleia onde se reúnem cerca de 600 judeus da comunidade de Lisboa, números redondos, citados de cor por Ana Araújo, antiga cantora do Teatro São Carlos, oriunda da Covilhã.
Nas explicações para a audiência não-judia, a história do edifício confunde-se com a história dos judeus em Portugal. Resumindo cinco séculos, Ana Araújo recua aos tempos da lei que instituía o catolicismo como religião única ao tempo de D. Manuel, a Inquisição, os judeus que emigraram para outras paragens e as suas famílias, que só puderam regressar após as guerras liberais. Mesmo assim, só podiam ser judeus, se mantivessem o estatuto de estrangeiro (apenas após a implantação da República foi possível ser judeu e português nos documentos de identificação). Em 1897, decidiram construir a sinagoga. "Ficaram o resto do século XIX a juntar dinheiro e só em 1902 foi lançada a primeira pedra. Em 1904 abriu", conta Ana Araújo.
No início do século XX estava ainda em vigor uma lei que impedia os templos religiosos, exceto os da Igreja Católica, de terem entrada virada para a rua. Foi assim que a sinagoga acabou erguida num local em que passa despercebida. "Há pessoas que trabalham aqui e nem sabem que a sinagoga fica aqui", confirma Ana Araújo. E está mais visível hoje desde que em 2004, por ocasião do seu centenário, um velho portão verde (na foto) foi substituído por outro, amplo, de cor branca e letras hebraicas.
Miguel Ventura Terra acabou por implantar a sinagoga de forma enviesada no terreno. Com boa justificação. O templo, como um todo, ficou virado para Jerusalém, como pede o ritual judaico quando se leem os livros sagrados, explica a anfitriã, confessando-se pouco entendida em arquitetura.
"As autoridades religiosas da época terão dado indicações, com certeza", explica o professor Fernando Baptista Pereira, da Faculdade Belas-Artes, sobre o programa que terá antecedido o projeto do arquiteto.
Imóvel de interesse público desde 2002, a sinagoga - nomeada de Shaaré Tikvah - foi projetada por Ventura Terra numa ocasião em que o arquiteto era um dos preferidos das elites.
Regressado de Paris, e da École de Beaux-Arts, em 1896, foi nomeado diretor dos Edifícios Públicos e Faróis e uma das primeiras obras que rubrica é um templo religioso: a capela real no Palácio da Ajuda, encomenda da rainha Maria Pia, mulher do rei D. Luís.
Na transição entre o século XIX e XX, Ventura Terra assina vários equipamentos que ajudaram a moldar a cidade como é hoje - dos liceus Camões e Maria Amália Vaz de Carvalho à maternidade Alfredo da Costa, passando pelos vários palacetes das famílias abastadas de Lisboa (alguns deles na mesma Alexandre Herculano) e a reconversão do convento de São Bento em Assembleia da República, com a colaboração do pintor Veloso Salgado, que deixou a sua marca também capela real e na sinagoga. "A pintura está tapada porque precisa de restauro e ainda não houve oportunidade", conta Ana Araújo.
Como a capela, a sinagoga de Lisboa, cinco anos mais nova, deixa notar as influências que Ventura Terra foi beber pelos países por onde viajou. "É muito europeia", comenta Ana Araújo, explicando que houve acrescentos nos anos 40.
Subsiste uma pergunta entre os visitantes. "Porque é que foi ele a desenhar a sinagoga?". A explicação oficial fica no ar. "Porque não havia judeu melhor para fazer", aventa Ana Araújo, defendendo que é assim que a comunidade funciona. Não havendo judeu melhor para a fazer, entregaram-lhe a empreitada . Outra explicação é oferecida por António Francisco Cota, arquiteto convidado a orientar a visita: Ventura Terra trabalhou com Alfredo Bensaúde (1856-1941), judeu de Ponta Delgada e um dos fundadores do Instituto Superior Técnico. "É normal que houvesse esta ligação".
Uns passos ao lado, no número 57, a porta abre-se num hall de entrada generoso. Os visitantes acotovelam-se até às escadas. O professor e historiador de arte Fernando Baptista Pereira, convidado para falar sobre Miguel Ventura Terra ao longo do ano comemorativo, contextualiza o que se vai ver - o apartamento que Ventura Terra desenhou, idêntico àquele em que viveu, com influências arte nova e o recurso a azulejos na fachada. Vieram, sabe-se, da Fábrica das Devesas, no Porto.
Nos projetos de Ventura Terra sublinham-lhe o facto "ir ao encontro da estrutura construtiva", refere António Francisco Cota. O teto do escritório, aquela divisão a que se podia aceder sem entrar nos domínio privados, mostra esse encontro da madeira que cobre o ripado sobre o qual assenta a telha. Idêntico caso acontece na sala de jantar, uma divisão ampla, com madeiras escuras, cortada pela presença de um friso de madeira em todo o seu perímetro. "Para elementos decorativos, como se usava à época", nota o arquiteto Cota.
Dentro da casa, doméstico e íntimo estão rigorosamente divididos. Os empregados têm uma escada e porta de entrada próprias, com acesso para a zona da cozinha, copa, despensa e quarto da governanta. Um corredor longo distribui de assoalhadas. "À francesa", ouve-se pelos corredores. Este piso é idêntico ao que ocupava Miguel Ventura Terra no piso 1, como demonstra o seu testamento, na posse de Alda Terra, sobrinha-bisneta do arquiteto, e à frente da associação com o seu nome que visa preservar, conservar e recuperar o seu património edificado.
O edifício foi no seu tempo um dos mais modernos da cidade. Tinha elevador e intercomunicadores entre pisos, sofisticações tecnológicas que agradavam ao arquiteto (também instalou um ascensor movido a água no palacete Mendonça anos depois). "É um prédio urbano numa cidade moderna", define Baptista Pereira. Conta que o arquiteto se ocupa dos mais ínfimos detalhes - corrimões, guardas, candeeiros - e nesse sentido, define o projeto como "obra total".
Viúvo boa parte da vida, foi aqui que recebeu os sobrinhos quando vinham estudar para Lisboa, confirma Alda Terra, mostrando fotografias dos familiares, comidas pelo tempo, mas onde ainda é possível distinguir alguns pormenores da sala de jantar. Quando morreu, aos 53 anos , Ventura Terra deixou este edifício às Faculdades de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e do Porto (FBAUL e FBAUP) este edifício com o intuito de que o produto das suas rendas servisse para bolsas para os alunos pobres, como tinha sido o seu caso.
Atualmente o edifício, a precisar de obras de conservação e manutenção, continua nas mãos destas faculdades , mas também das de Arquitetura de Lisboa e do Porto (que antes estavam vinculadas às Belas Artes), e é gerido pela FBAUL.
O seu presidente, Victor dos Reis, através do secretariado, respondeu ao DN que qualquer decisão sobre o imóvel terá de ser feita em conjunto com as outras faculdades. "Os planos para este edifício que se encontram em desenvolvimento, visam cumprir o desejo do seu proprietário original de doar o valor dos alugueres a estudantes com dificuldades financeiras".
O caso é da exclusiva responsabilidade dos detentores do imóvel, considera a Direção Geral do Património Cultural, questionada pelo DN. "Os proprietários não apresentaram qualquer projeto de recuperação, por isso não temos de intervir". Qualquer entrada em cena da entidade pública exige um pedido de parecer prévio.