"Ah, coisa linda", ouve Raquel Tavares, rua acima no seu bairro, Alfama, onde vive há 10 anos e cujos palcos conhece há muitos mais, uma miúda de 7, 8 anos que cantava nas muitas coletividades que faziam noites de fado. É já parte da paisagem, a anfitriã natural do festival Caixa Alfama, que começa esta sexta-feira e termina no sábado. Há um palco instalado em todos os cantos, num total de 12..Carminho, Ricardo Ribeiro e Gisela João, novos e já consagrados, fecham a noite no PalcoCaixa, com vista para o rio na sexta-feira. Para sábado está programada uma homenagem a Beatriz da Conceição, cantada por seis fadistas (e rostos bem conhecidos de Alfama) e, a fechar, a própria Raquel Tavares para quem Bia, como lhe chama, é uma referência..No museu do Fado, Raquel procura a imagem da cantora, nesse longo painel que reúne fotografias dos mais importantes fadistas. Ali estão Amália Rodrigues, Fernando Maurício, Berta Cardoso, Lucília e Carlos do Carmo, Alfredo Marceneiro e Argentina Santos, "a dona da Parreirinha". Em vésperas de tributo a Beatriz da Conceição, Raquel Tavares elogia-lhe mais do que a companhia. "Tinha uma grande criatividade, um repertório do melhor que conheço", avalia.."A Bia era do Porto e veio para Lisboa com 23 anos, foi convidada para cantar nas casas todas", contextualiza a cicerone. Morreu aos 76 anos, "a 26 de novembro do ano passado", precisa Raquel, 31, que a conheceu quando tinha 17. "Virei madrugadas com ela". Um privilégio, diz. "Gostava da noite, como todos os fadistas". Como a própria Raquel..1. Palco Caixa.Sexta-feira: Carminho (00.00), Ricardo Ribeiro (22.30) e Gisela João (21.00). .Sábado: Raquel Tavares (00.10) e Maura Airez, Sara Correia, Artur Batalha, Pedro Galveias, Diogo Rocha e Miguel Ramos (21.30). .Ponto de encontro.Marcamos encontro à porta do Museu do Fado, mas encontramo-la mesmo em frente, no 33, um dos cafés do Largo de Chafariz de Dentro, entre turistas e gente do bairro. É das zonas mais frequentadas, as casas de fado sucedem-se. Algumas nem fazem do fado o seu cartão de visita. "Não precisam, ouve-se tudo", brinca Raquel, fadista profissional desde os 17 anos. Passou por várias casas de fado no Bairro Alta e uma dos mais míticos de Alfama, a Casa de Linhares, onde esteve cerca de quatro anos..O cartaz da quarta edição do festival organizado pela Música no Coração reúne cerca de 35 nomes, e procura tocar todas as correntes do fado. Do mais tradicional ao novo, passando pelas manifestações populares. O bilhete custa 38 euros para os dois dias até 22 de setembro, 45 nos dias 23 e 24 (é obrigatório trocar o bilhete por uma pulseira que dá acesso aos vários locais onde decorrem os espetáculos. Raquel, repetente, diz que por estes dias a sua casa se converte em camarim. "É só atravessar a rua"..2. Largo do chafariz de dentro.Sexta-feira e sábado (às 19.45): Fado à Janela, com Jorge Silva, Miguel Monteiro e José Manuel Rodrigues..Museu do Fado, "um grande apoio aos artistas".Raquel partilha o bairro como o vê, e o Museu do Fado, também na rota de palcos do Caixa Alfama, é paragem obrigatória. "É um grande apoio aos fadistas quando procuramos autores", conta, a caminho. É também aqui que se ensaia. "Combinei aqui e esqueci-me de avisar, mas foi só telefonar e não houve problema", conta, em jeito de exemplo. À entrada, um longo abraço a Penalty, mítica figura do bairro, com direito a placa com fotografia e curta biografia numa das paredes de Alfama - um projeto de 20 retratos da fotógrafa Camilla Watson inaugurado a semana passada pelo presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, e pelo autarca de Lisboa, Fernando Medina. Arlindo Santos é, também, o Morto-Vivo. Deram-no como morto aos 10 anos, após um acidente na docas. "Falei com todos os jornais na altura, o DN também", conta..A visita é corrida, mas explicativa. É neste museu da EGEAC que estão guardados alguns dos primeiros registos de fado, ainda do século XIX, em discos de porcelana, aqui depositados por um colecionador. Raquel Tavares visita o baú de madeira que é uma casa de bonecas, feito por Alfredo Marceneiro, usando a arte que lhe deu apelido. Trauteia o fado A Casa da Mariquinhas , para mostrar que toda a letra, "de uma casa de meninas, não há outra maneira de dizer", está ali representada em miniatura. Das "janelas com tabuinhas", ao "cofre forte" passando pelos "quadros de gosto magano". Mariquinhas e as meninas também lá estão..Museu do Fado.3. Auditório.Sexta-feira: Pedro Calado (21.30) e Guilherme Banza (20.00).Sábado: Kiko (21.30) e guitarristas António, Paulo e Ricardo Parreira (20.30). .4. restaurante.Sexta-feira: António Pinto Basto (22.10) e Carla Pires (21.10).Sábado: Fado Nação, com Maria da Nazaré e António Passão (21.10). .O miradouro e o turismo.Apesar de não ter nascido em Alfama, Raquel Tavares sempre quis vir morar para o bairro e tem memórias antigas. "Lembro-me da varina, da senhora da fruta e dos legumes a vender na rua de S. Pedro". Mudou-se há dez para aqui. "Já morei em quatro casas, sempre que arranjo uma com mais um metros quadrados, mudo-me", conta, para logo a seguir corrigir: "Mudava-me, porque agora é insólito absurdo o valor do arrendamento". Fala-se de turismo. Raquel é uma crítica da situação, mesmo quando refere que é ótimo para a economia local. "Estão a perder-se as pessoas do bairro.".Antes de chegar, ao adro da igreja de Santo Estevão, para e abre os braços para alcançar três prédios recuperados. "Aqui não vive um português". Enfatiza: "Um". Mas do que se queixa mesmo é do que ouve da boca dos guias turísticas. "Dizem que não temos máquina de lavar roupa! Fazer de nós uns coitadinhos miseráveis...".O adro da igreja de Santo Estevão tem vista privilegiada para a cidade. A turista francesa, ao lado do marido, queixa-se do cruzeiro ancorado. "Cache la vue!" (esconde a vista). Raquel conversa com o casal, no seu jeito fadista. "É assim todos os dias aqui no meu bairro"..5. Adro da igreja de santo estevão.Sexta-feira: Cidália Moreira (21.30) e Nathalie Pires (22.45)..Sábado: Cláudia Madur (21.20) e Carlos Leitão (22.35). .A casa da marcha de Alfama.Por onde passa Raquel cumprimenta e é cumprimentada. Vai elencando as mais típicas casas de fado, como o Dragão de Alfama. "Uma casa muito antiga..." Ainda não é meio dia de quarta-feira, e já cheira a sardinhas assadas. Pelas ruas estreitas da antiga judiaria de Lisboa, chega-se ao centro cultural batizada com o nome do escritor Magalhães Lima, explicação dada por um dos vizinhos de Raquel que se junta à conversa..É aqui que todos os anos se ensaia a marcha de Alfama, como denuncia o gigantes enfeite em forma de manjerico à entrada. "Era um convento, foi totalmente reconstruído", conta a fadista. Raquel foi madrinha da marcha quatro anos consecutivos. "Cantava às 21.00 aqui perto, vinha ao ensaio às 21.30 e depois ia cantar uma segunda vez". Diz que levava muito a sério o papel e chegou marchar numa saída do grupo. "Sabia as marcas". Há dois anos, com outro trabalho em mãos, teve de dizer não. "Também é preciso renovar"..Metros abaixo, em zona cada vez mais familiar para a fadista, encontra Mário Silva, outra das caras que a britânica Camilla Watson retratou. "Vivo aqui há 75 anos, temos aqui um pátio". Este é o Largo do Peneireiro, enfeitado com grinaldas de santos populares, como se fosse junho. Peneireiro é um pássaro. "Também temos o calão de Alfama", diz Raquel, em tom castiço..6. Centro cultural dr. Magalhães lima.Sexta-feira: Marco Oliveira (22.15) e Marina Mota (23.15)..Sábado: Marco Rodrigues (22.00) e Aldina Duarte (23.15). .No largo da palmeira.No largo de S. Miguel também haverá fados nestes dias. Raquel, como as gentes de Alfama não chama a este largo, conhece o sítio por um nome bem diferente do que anunciam as placas toponímicas. "Toda a gente o conhece como o largo da palmeira". "Havia aqui uma palmeira e no ano passado, como estava doente, tiveram de a cortar", conta. "O desgosto que foi a palmeira ser levada", lembra Raquel. Mas, em seu lugar, veio outra, de menor porte, que assim continua a justificar o nome que os do bairro dão a este local. A partir de 2017 este será também o largo do Museu Judaico, um dos projetos da câmara e da Associação de Turismo de Lisboa..7. Igreja de São miguel .Sexta-feira: Fados a Nossa Senhora, com Ana Pinhal, Sérgio Martins, Patrícia Costa e Miguel Xavier (21.30).Sábado: Fado Rezado, com Matilde Cid e Francisco Salvação Barreto. .Um filme no bairro.Passa a carrinha de caixa aberta da recolha do lixo e Raquel mostra outro truque de Alfama: como sobreviver nas ruas estreitas, à passagem dos carros. Resguarda-se no umbral da porta e encolhe-se. A viatura passa deixando à vista a confusão instalada na rua, à portade outra das suas casas de fado, a Baiuca. À entrada, o cartaz anuncia fado vadio, lá dentro, o ambiente de taberna leva a outros tempos. Mas o homem ao balcão é que surpreende mesmo. É o músico Rão Kyao. Não porque tenha trocado a música pela restauração, mas porque participa no filme Alfama em Si, que está a ser rodado por aqui. A produtora chama-o para a cena e a fadista pede para tirar um fotografia. "Tia, posso ir ao balcão?", pede. "Desde que não te ponhas toda nua!", responde-lhe da rua..O realizador é Diogo Varela Silva, filho de Celeste Rodrigues e sobrinho de Amália, cumprimenta Raquel. O guião fala de fado e os artistas convidados também: Ricardo Ribeiro, Ana Moura, Sara Ribeiro. "É todo passado no bairro e com gente do bairro também". Ao cruzar da esquina, aparece Gaspar, filho de Diogo. Está a tocar guitarra e também faz parte do filme..8. Largo de são Miguel.Sexta-feira e sábado (a partir das 21.55): Flávio Cardoso, Miguel Monteiro, José Manuel Rodrigues.Na rua de São Pedro."Olga! Ó Olga!". Raquel chama a vizinha da rua para lhe pedir um favor. Este é o seu território, a poucos metros da mercearia da D. Manuela, outro rosto de Alfama imortalizado em fotografia. Raquel chama-lhe "a mãe do bairro". "Pergunta se já comi, se quero que me guarde alguma coisa, diz-me para apanhar a roupa porque vai chover". Com ela, Raquel aprendeu outro truque de Alfama: atar uma corda ao saco plástico para fazer subir mercadorias..No Nova Alfama, Raquel cumprimenta D. Rosa e o senhor Jorge. "É onde almoço e janto quase todos os dias". Fica mesmo ao lado de outra casa mítica: o Sportivo Adicense, fundado em 1916, como rezam as informações na fachada. É um dos pontos de paragem do Caixa Alfama e um desses lugares de que Raquel guarda muitas recordações. "Eu queria ficar até de noite para ser como as fadistas", conta."Quando há fados no Adicense, ouço em casa", diz, de volta a 2016..Começou a cantar em bairros e coletividades de Lisboa, miúda de escola primária. "Não cantava, mas era toda pespineta e achavam-me graça", desvaloriza. Seja o que for, aprendeu. Aos 12 anos venceu a Grande Noite do Fado, representando a Academia de Recreio Artístico. Ela e Ricardo Ribeiro, na época um adolescente de 15 anos. Raquel ri-se e conta que eram namorados na época..9. Grupo sportivo adicense.Sexta-feira: José da Câmara (21.45) e Vânia Duarte (20.40)..Sábado: João Casanova (21.45) e Beatriz (20.40). .10. Palco Futuro .Sociedade Boa União.Sexta-feira: Mariana Botas e Pedro Pereira (22.15) e Luana Velasquez e João Leote (21.00)..Sábado: Bárbara Santos e Margarida Ribeiro (22.15) e Beatriz da Conceição e Rodrigo Figueira (21.00). .11. clube Lusitano.Sexta-feira: Ana Margarida e Lino Ramos (22.15) e José António e Silvino Sardo (21.00). .Sábado: Rui Vaz e Conceição Ribeiro (22.15) e José Quaresma e Linda Rodrigues (21.00) .Na Água das Ratas.O último dos segredos a desvendar em Alfama está no largo das Alcaçarias, mais um que tem outro nome entre os moradores. Nesta praça havia antigamente uma fonte e o síto foi rebatizado de Água das Ratas. "Por causa das senhoras que passavam a caminho da igreja, eram ratas de sacristia", brinca Raquel. É mais um dos palcos do festival e um desses que lugares que está para sempre associado ao fado. Sob um arco, no Beco dos Cortumes, ficava a Taverna do Embuçado, casa de João Ferreira Rosa e, mais tarde, "dos pais de Carminho", a fadista Teresa Siqueira e o marido. Está fechado há muitos anos. É dos poucos locais onde Raquel não cantou..12. largo das alcaçarias.Sexta: Fábia Rebordão (21.50) e FF (20.55).Sábado: José Gonçalez & Sandre Ibérico (21.30)