Material escolar
Segundo o seu próprio relato, uma professora de 50 anos da Escola EB1 São Gonçalo, ao Lumiar, terá "chamado a atenção" de um rapaz que havia deixado cair um caroço no chão. Como o rapaz a ignorasse, a professora "segurou-lhe a mão", episódio que veio a ser conhecido por familiares do rapaz. Estes não apreciaram a atitude, pelo que se precipitaram para o interior da escola e arremessaram um balde de lixo de alumínio à cabeça da professora. Talvez seja isto a avaliação dos professores pelos pais tão desejada pelo Ministério da Educação. Mas seja ou não, não se pode negar o seu potencial para incrementar a participação dos encarregados de educação na vida escolar.
Esta e outras histórias, bem como o retrato hobbesiano da escola pública oferecido por uma recente reportagem televisiva, resultam imediatamente numa prolífica tendência para a moralização. Repete-se como é importante "acabar com a violência nas escolas" e transformá-las nos "espaços de formação e saber" que deveriam ser. Mas talvez esteja na altura de adoptar outra perspectiva. Talvez se deva afinal reconhecer os méritos da violência para resolver certo tipo de problemas. A história da humanidade é a história da ambição pelo poder e dos meios para o alcançar. Há ocasiões em que os meios pacíficos e consensuais não permitem decidir quem pode e o deve assumir. A violência torna-se então num instrumento necessário.
Segundo nos ensinam sofisticados tratados de sociologia, a escola é um espaço de poder e violência, onde se cruzam diversos agentes: o Estado, que exerce uma violência física e simbólica sobre o jovem; os professores, que são os agentes executores da violência estatal; a família, que delega no Estado o exercício daquela repressão que (por manifesta falta de tempo) não consegue exercer no espaço doméstico - é por isso que devolve o jovem ao "espaço disciplinador e concentracionário" da escola; e, claro, o jovem, vítima inerme do "sistema". Houve um tempo em que era fácil saber quem detinha o poder no sistema: era o tempo em que prevalecia a autoridade de pais e professores. Agora não. O jovem toma lentamente consciência do seu estatuto oprimido, e revolta-se. As cenas de violência de alunos contra professores de que se vai ouvindo falar por aí talvez devessem ser vistas como cenas de uma nova luta de classes. E, à luz desta interpretação, como não apreciar a atitude dos pais, que, munidos do seu balde de lixo de alumínio, logo acorreram em defesa da criança vitimada? Num típico padrão hegeliano, onde outrora pais e professores formavam uma aliança inabalável na defesa da situação, agora é todo o edifício que começa a ruir, minado pelas suas próprias contradições, daí resultando que muitos pais progressivamente tomem o partido dos elementos mais débeis da sociedade.
Nem se diga que a violência corresponde a um abandono das funções tradicionais da escola. As escolas cavaleirescas da Idade Média pretendiam sobretudo formar os futuros cavaleiros (ou cavalheiros) nas artes bélicas, pouco lhes interessando que soubessem ler e escrever. Talvez os cavalheiros do futuro recuperem essa nobre tradição. Os seus actuais níveis de literacia apontam já para um certo êxito nesse esforço de renovação do mundo escolar. A que acresceria ainda a vantagem notória de se difundir a prática desportiva nas escolas, até para fazer face ao novo "flagelo" do século XXI que é a obesidade adolescente. Haveria certamente adaptações a fazer, trocando a proficiência com o arco e a flecha, ou a espada, por outros talentos. De valorizar seriam talvez certas influências orientais (e o Oriente tem sido a fonte de muitas das melhores novidades ocidentais desde os anos 60), como o karaté ou as matracas.
Isto sem mencionar o contributo extraordinariamente positivo para o equilíbrio psíquico do jovem. Segundo nos ensinou o sociólogo alemão Norbert Elias, o processo civilizacional, ou seja, o processo de criação e desenvolvimento da civilização ocidental, construiu-se sobre a repressão dos nossos instintos mais violentos. Ora, são consabidos os inúmeros efeitos mentais perniciosos resultantes da repressão dos instintos. Sendo esta repressão orquestrada pela família e, sobretudo, a escola, talvez fosse então hora de mudar de paradigma para, segundo os mais importantes contributos da psicanálise, transformar a escola num espaço privilegiado para a livre expressão do mais primordial que o jovem alberga em si. Caberia à descarga de stress garantida pelo exercício da violência contra o docente opressor um papel fundamental.
Quando a violência tiver cumprido a sua função libertadora, teremos certamente uma escola mais livre, justa e fraterna, expurgada das taras opressoras da sociedade ocidental. E que belo espectáculo não seria ver os autocarros da cidade carregados de jovens que, em vez da proverbial mochila gorda de cartapácios inúteis, transportariam apenas um balde de alumínio.