"Sentimo-nos mais objetos de imagem que de mérito: 'A cara bonita ganhou uma medalha'."
Em 2017, uma andebolista queixou-se da sexualização do equipamento feminino à Comissão da Igualdade. Esta deu-lhe razão, mas a federação portuguesa invocou normas internacionais. Cinco anos depois, a revolta da equipa norueguesa lançou um debate que marcou Tóquio e pôs as atletas - e o mundo - a pensar.
"Nestes Jogos Olímpicos falámos muito disso entre nós, atletas. De como as jogadoras de andebol norueguesas, ao protestarem pela diferença de equipamento em relação aos jogadores da modalidade, e as ginastas alemãs ao optarem pela calça de lycra em vez do body cavado, lançaram um debate que faz todo o sentido. O corte do equipamento das mulheres é tudo muito apertado, curtinho. Sentimo-nos mais objetos de imagem que de mérito. Muitas vezes os comentários são "a cara bonita ganhou medalha". E veem-se, leem-se e ouvem-se coisas que não são corretas, com as quais já não devíamos ter de lidar".
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A reflexão é de Cátia Azevedo, 27 anos, velocista que competiu em Tóquio na prova dos 400 metros, onde chegou às meias-finais, saindo com a melhor classificação de uma atleta nacional nesta categoria nos Jogos Olímpicos. "Se calhar houve uma altura em que se achava que a afirmação do género feminino no desporto era pela beleza, pela imagem. E nós agora achamos que o mérito está nos resultados. Estamos a lutar por isso, e nota-se que as mulheres estão a ter mais voz."

A portuguesa Cátia Azevedo nas meias-finais dos 400 metros dos Jogos Olímpicos Tóquio2020
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Mas ainda não a suficiente: "Nas entrevistas perguntam-nos se temos namorado, se queremos ser mães; na negociação de um contrato, quando nos aproximamos dos 30, começam com "ah, já estás naquela idade de ter filhos..." Os homens não têm de lidar com isso."
Ou com o facto de, no meio dos relatos televisivos, como sucedeu nestes Jogos Olímpicos pelo menos com o comentador de atletismo da RTP, Luís Lopes - para espanto e irritação de muitos telespectadores, como se constatou nas redes sociais - se poder ouvir "esta atleta é lindíssima" ou referência a "atributos físicos" desta ou daquela, numa naturalização da apreciação das desportistas como objetos sexuais. Uma naturalização tão presente que a primeira página de um jornal desportivo que mostrava Patrícia Mamona, a medalha de prata no triplo salto, em voo, vista de baixo, levanta dúvidas a Cátia. "Pode não ter tido má intenção, mas o simples facto de se discutir a intenção diz tudo. E falou-se também de ela ter um piercing - não tinha sequer de se falar disso." Desgostou-a, igualmente, haver uma câmara de TV atrás dos blocos de partida nas provas de velocidade, nos quais as atletas assentam as mãos, dobrando-se: "Que horror, naquela posição e com aquele equipamento vê-se tudo."
"Imagine estarmos a competir e a pensar 'está-se a ver a minha banha'"
Não é que Cátia seja pudica, mas a sensação de estar sempre em exibição e alvo de olhares apreciadores e sexualizados é perturbadora e pode afetar a performance. O equipamento que refere é aquilo a que a Federação Portuguesa de Atletismo chama "top e cueca". Uma opção que não existe para os homens - para eles só há os calções clássicos curtos, calções de lycra pelo joelho e calças de lycra, assim como camisolas de alças e de manga comprida, todas até abaixo - no pack de indumentárias patrocinadas por uma marca desportiva que a Federação entregou aos e às atletas para os Jogos. Top e cueca é aliás o equipamento atualmente usado pela maioria das competidoras de todo o mundo em provas de corrida (velocidade, meio-fundo ou fundo), assim como no salto em altura, triplo salto e salto em comprimento.

Evelise Veiga, atleta portuguesa do salto em comprimento e do triplo salto, que competiu em Tóquio nesta última modalidade.
© Andrej ISAKOVIC / AFP
Esta duas últimas são modalidades nas quais compete Evelise Veiga, 25 anos, que também esteve em Tóquio, tendo falhado a qualificação para o salto em comprimento e chegado à meia final de triplo salto. Como Cátia, competiu de cueca e top. "Habituei-me desde pequena, não me incomoda. Mas só uso a cueca na competição ou quando está muito calor. Geralmente quando treino uso calças de lycra ou calções." Admite que a areia, ao "aterrar", se mete nas cuecas - "É muito chato, mas tiramos" - e que nunca tinha pensado muito na diferença entre os equipamentos femininos e masculinos.
"Tenho-me questionado sobre isso agora, a propósito deste caso das norueguesas e alemãs. Acaba por incomodar quando pensamos no assunto. Quando estamos na pista temos de sentir-nos bem, não devemos estar a pensar no que temos vestido. Porém em tudo o que tenha exposição pública acabamos, de uma forma ou de outra, por ser julgadas pela nossa aparência. É o marketing, também - trabalhamos tanto como os homens mas ouvimos comentários como "ela só conseguiu aquilo porque é bonita, tem bom aspeto". Só somos valorizadas como atletas quando fazemos uma marca extraordinária - até aí somos vistas como modelos do desporto." Conclui: "As atletas deviam ter uma palavra a dizer sobre os equipamentos."
Na verdade, as atletas podem escolher, nos packs fornecidos pelas federações ou pelas marcas que as patrocinam (quando estão a competir a título individual), outros equipamentos além da cueca e top: no lançamento de peso, disco ou dardo, nas quais os corpos tendem a ser menos esbeltos ou considerados menos atraentes, esse conjunto não é nada comum. Há exceções, porém, como a assinalada por Cátia Azevedo: "A rapariga que ficou em segundo no lançamento do peso [a americana Raven Saunders, 1,65 de altura e 108 quilos, negra e lésbica assumida que no pódio ergueu os braços em "x", significando, explicou, "a intersecção onde todas as pessoas oprimidas se encontram"] foi muito falada por ter tido a coragem de ir de cueca. "Que grande atitude", comentou-se. Porque nessas modalidades elas tendem a usar coisas mais largas e compridas."
Uma vontade que às vezes também surgirá a velocistas como Cátia. "Antes da competição temos muitas questões - e uma é se nos apetece ou não mostrar a barriga, porque às vezes achamos que estamos gordas ou inchadas - imagine estarmos a competir e a pensar "está-se a ver a minha banha". Não gosto nada de correr em cueca quando me sinto gordinha", confessa. "Como quando comecei a correr já existia este equipamento de cueca e top e habituei-me, mas na verdade acho que em podendo escolher prefiro o maillot - a Adidas agora está a dar maillots."
"Não é uma conversa que tenhamos com a federação, a de nos sentirmos objetificadas"
O maillot, que já foi muito usado na competição feminina nos anos 1980/90 (Fernanda Ribeiro ganhou a medalha de ouro nos 10 mil metros em 1996, nos JO de Atlanta, EUA) e não fez parte do pack da Federação Portuguesa de Atletismo para estes JO, é porém tão cavado ou mais que a cueca: tem o corte de um fato de banho. Ao contrário do que se passa com o pack de equipamento masculino da FPA para estes JO, para as mulheres não havia a opção body com calção curto ou comprido - preferido por muitos velocistas homens.

Fernanda Ribeiro, medalha de ouro dos 10 mil metros em 1996
Porquê? Afinal, há detalhes nos quais a maioria das pessoas tenderá a não pensar quando vê as atletas competir nesses preparos - as mulheres têm o período. E pelos. Uma parte de baixo cavada e esforços físicos tão pronunciados, aliados aos zooms das câmaras, acrescentam stress desnecessário às atletas - algo que à partida desaconselharia o desenho que as marcas foram consagrando como uniformes femininos, no atletismo como na ginástica.
"Quando as pessoas perguntam como é a nossa preparação para a prova no dia anterior, a depilação faz parte", informa Cátia com uma gargalhada. "Estamos sempre um bocadinho preocupadas com isso. Muitas já fizeram a depilação a laser, mas sou contra. E tenho de ter esse cuidado - as virilhas, as axilas sempre rapadas... A Rosa Mota ainda é falada por isso, por correr sem depilar as axilas. Quanto ao período, bom, no segundo dia em que competi na eliminatória nestes JO sabia que estava quase a vir. Da eliminatória para a semifinal sujei-me toda - e o fio do tampão estava de fora. Muito chato."

Rosa Mota, vencedora da Maratona nos Jogos Olímpicos de 1988
Por que é que, sendo assim, a maioria das velocistas, fundistas e saltadoras usa aquele equipamento tão cavado? Há um sorriso na voz da velocista ao responder. "Pois é... Acho que as atletas gostam de correr de cueca para mostrar que estão bem." Não haverá também uma "pressão de pares" e das próprias autoridades desportivas e do marketing, uma dificuldade de fugir daquilo que se impõe como norma? "Sim, um bocado. Claro que há as que não o fazem, depende um bocado da posição em que se está. Por exemplo a campeã dos 400 metros [Shaunae Miller-Uibo, das Bahamas] correu com top comprido e calção de ciclista - mas é a campeã, pode. E a Allyson Félix [várias vezes medalha de ouro em anteriores JO nas provas de velocidade e agora bronze nos 400 metros], correu com body nas eliminatórias e na final de calção curto. Ela diz que não gosta de usar cueca porque tem uma cicatriz. E muitas das atletas que, como ela, foram mães e têm a barriga mais flácida não gostam de usar top curto."
Evelise reflete: "Ao usarmos outro equipamento no meio vamos ser as únicas diferentes e acabamos por ser criticadas - se calhar não queremos cair nessa realidade e ter de lidar com as críticas." Certo é que, diz Cátia, este debate que cresce entre as atletas não parece ter ainda passado para a autoridade desportiva: "Não é uma conversa que aconteça com a Federação Portuguesa de Atletismo, esta de nos sentirmos objetificadas."
Andebolista portuguesa protestou contra "roupa que sexualiza o corpo"
Foi no final de julho que a equipa norueguesa feminina de andebol de praia recolocou na agenda desportiva e mediática esta questão - a da desigualdade de género no desporto de alta competição - ao aparecer em jogo, no campeonato europeu, de calção curto em vez da cueca "regulamentar".
Perante a desobediência às regras - que impõem na modalidade, para as mulheres, uma cueca que não pode ter mais de 10 centímetros de largura lateral - a equipa foi castigada, por "vestuário impróprio", com uma multa de 1500 euros e ameaçada de desclassificação se repetisse a ousadia.
"É chocante termos que pagar para não jogar de biquíni", disse uma das jogadoras, Tonje Lerstad, à BBC. Cederam, para não serem desclassificadas, mas fizeram xeque-mate com uma foto de grupo ao lado da seleção masculina, ambas as equipas com o equipamento regulamentar. Elas de top e cueca, eles de tshirt larga de cavas e calções pelo meio da coxa, ilustrando o incompreensível: por que raio existiria tal diferença, se o critério fosse apenas conforto e funcionalidade?
Antes, em maio, a seleção alemã feminina de ginástica artística tinha já lançado o debate quando três atletas, ao competir no campeonato europeu, na Suíça, usaram body de corpo inteiro em vez do clássico maillot cavado, anunciando que o faziam em protesto contra a hipersexualização das atletas; no JO voltaram a usar esse equipamento.
"Todas as mulheres se querem sentir confortáveis na sua pele. Na ginástica, isso é cada vez mais difícil à medida que crescemos e deixamos para trás o corpo de meninas", explicou à TV pública alemã Sarah Voss, uma das ginastas que optaram pelo body de corpo inteiro (que faz parte do pack distribuído). "Quando criança, não pensava muito nos maillots. Mas, quando entrei na puberdade, quando menstruei, comecei sentir-me cada vez mais desconfortável."
Em Portugal, como nos outros países, o assunto foi noticiado, sem que quer a Federação Portuguesa de Andebol quer a de ginástica se pronunciassem. Esta última, contactada pelo DN, não respondeu ao pedido de comentário; Miguel Laranjeiro, ex-deputado do PS e presidente da primeira desde 2016, declinou pedidos de entrevista de vários media.
O DN não teve melhor sorte: quis confrontá-lo com o facto de várias federações nacionais europeias, além da da Noruega - Espanha, Alemanha, Suécia, Dinamarca, França e Holanda - estarem a pressionar no sentido de uma mudança e de na passada quarta-feira o presidente da Federação Internacional de Andebol, o egípcio Hassan Moustafa, ter admitido que é "muito provável que sejam criadas novas regras", mas não conseguiu chegar à fala com Laranjeiro.
O silêncio da Federação Portuguesa de Andebol e do seu presidente é tanto mais curioso quando há antecedentes, em Portugal, em relação ao protesto das norueguesas: em 2017 uma jogadora queixou-se à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género por causa, precisamente, da desigualdade entre o equipamento feminino e masculino. De acordo com uma entrevista dada ao Público em 2018 pela então presidente da Comissão, Teresa Fragoso, a atleta reclamou por lhe imporem "roupa que sexualizava o corpo" e foi-lhe reconhecida razão. Mas, ainda segundo Fragoso, a Federação invocou as regras internacionais - "Disse que seguia orientações da Federação Europeia" - e pelos vistos não tomou qualquer iniciativa para tentar que fossem mudadas.
Em contraste, quando em 2019 uma jogadora da equipa sub16 do Clube de Basquetebol de Tavira foi obrigada pela arbitragem a abandonar um jogo por querer, alegando motivos religiosos (é muçulmana), usar uma camisola de manga comprida sob o uniforme oficial, os responsáveis da Federação Portuguesa de Basquetebol reagiram, presenteando-a com "o equipamento necessário" e frisando que as regras da Federação Internacional de Basquetebol "são inclusivas".
"A ideia é sempre reger os corpos das mulheres"
Não, o assunto não é novo, mesmo se a explosão mediática pode fazer parecer que sim. Pelo contrário, é debatido há muito, nomeadamente na academia, onde são muitos os trabalhos sobre a sexualização e objetificação das desportistas.
O debate esteve aliás presente desde que, no desporto contemporâneo, as mulheres começaram a fazer o seu caminho. E se no início do século XX a preocupação, em nome da "moralidade" e de um certo conceito de "feminilidade", era tapar, com os uniformes permitidos às atletas, de saias e mangas compridas, a tolher-lhes os movimentos, levando a protestos no sentido de uma aproximação à funcionalidade do vestuário dos homens (chegaram a ser obrigadas a usar corpete), a partir de certa altura a tendência passou a ser a inversa. Estando em causa sempre o mesmo problema: o de um olhar exterior, sexualizante, sobre o corpo das mulheres, que quer decidir o que elas podem/devem ou não fazer com ele.
Ao contrário do que tantas vezes se diz, a contrapartida da sexualização que "despe" não é o moralismo, religioso ou não, que tapa. No caso do desporto, quando certos países querem impedir mulheres de competir por motivos religiosos - pela indumentária desportiva mas também porque a imagem poderosa, musculada, muitas vezes agressiva, associada à alta competição choca com a ideia tradicional da "feminilidade" frágil que precisa da proteção masculina, e a intensidade da dedicação necessária desvia as mulheres das suas funções atribuídas de esposas e mães - ou impõem indumentárias que as "cobrem", fazem-no pela mesmíssima razão pela qual noutras paragens se impõe uma cueca reduzida. Tapá-las para "não provocar" e despi-las para "provocar": é tudo sempre sobre o olhar dos homens, o que eles sentem ou não sentem, o que querem ou não querem, não sobre elas.
Irónico aliás que uma das grandes discussões recentes sobre equipamento desportivo feminino, a propósito do voleibol, que acabou por conduzir à mudança das regras nos JO de 2012, permitindo calções e camisolas de mangas compridas quando antes só eram permitidos tops e cueca ou fato de banho, tenha tido motivos religiosos: parece, como já vários analistas sinalizaram, que é mais fácil mudar equipamentos por essa razão que simplesmente porque as atletas não os consideram confortáveis e querem poder escolher o que vestir.
"A ideia é sempre reger os corpos das mulheres de acordo com regras que lhes são impostas", sublinha a socióloga Virgínia Ferreira, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Co-autora, com Pedro Saraiva e Maria João Silveirinha, de uma análise da representação do desporto feminino na imprensa portuguesa ao longo de vinte anos - A distant finish line for women - Gender and the sport press in Portugal/Uma meta distante para as mulheres - Género e a imprensa desportiva em Portugal (1996/2016), publicada na revista Ex aqueo, da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres -, a investigadora concluiu que apesar de ao longo das duas décadas estudadas ter existido um grande incremento no número de atletas femininas, "não houve evolução sobre a forma como estas são representadas nem nas referências ao desporto feminino."

Patrícia Mamona, medalha de prata do triplo salto em Tóquio.
"Mesmo contrafeitas, as atletas reproduzem a dualidade em relação ao seu corpo"
Não houve, resume Virgínia Ferreira, "transformação do olhar sobre o desporto feminino ao longo desse tempo. Há uma perspetiva de dar conta dele sempre com relevo para a beleza dos corpos. Há uma ideia socialmente partilhada de que o sexo vende - e as próprias atletas se têm conformado com isso. Há uma dupla perspetiva que se traduz nessas práticas: o interesse das federações em promover as imagens das atletas e as atletas, mesmo que contrafeitas, a reproduzir essa dualidade em relação ao seu corpo."
Os objetivos são por vezes claramente assumidos, como sucedeu quando em 2004 o ex-presidente da Federação Internacional de Futebol (FIFA), Sepp Blatter, sugeriu que as futebolistas femininas usassem calções curtos para "atrair mais espectadores". Ou quando a Federação Australiana de Basquetebol obrigou as suas jogadoras a usar um body tipo fato de banho nos JO de Pequim, em 2008. Elas acederam, sob protesto - e os responsáveis admitiram a uma jornalista que se tratava de as tornarem, para efeitos de marketing, o mais sexualmente atraentes possível. Outro exemplo é o da Associação Internacional de Boxe, que quis impor (uma petição de protesto impediu esse propósito) às boxeurs saias em vez de calções na preparação para a introdução desta modalidade feminina nos Olímpicos de 2012 - alegando que era para que "o público distinguisse melhor as atletas dos atletas".
A justificação faz sorrir. Mas lembra um episódio sublinhado por Virgínia Ferreira na conversa com o DN - em 2018, num artigo no Público sobre desportos náuticos no rio Lima, uma responsável do clube de remo de Viana de Castelo, Iva Correia, para, segundo o texto, "lutar pela desmistificação do remo como desporto de homens" argumentou assim, referindo as praticantes do clube: "São campeãs, são miúdas com sucesso escolar, com sucesso no desporto e são, na verdade, muito bonitas e elegantes. Portanto, esta ideia de que são desportos que as deixam musculadas e um pouco masculinas é errada."
A questão é que se pensa sempre nas atletas como mulheres primeiro e atletas depois, sintetiza Jaime Schultz, professora de história e filosofia do desporto na Universidade da Pensilvânia numa entrevista ao site Mashable; no mesmo artigo, Bonnie J. Morris, que há 25 anos ensina história do desporto feminino na Universidade de Berkeley, corrobora: "A força nas mulheres é sempre vista como quase suspeita, mais masculina e menos feminina." Daí que, prossegue, um uniforme "sexy" possa ser visto e sentido como uma "compensação".
Uma certificação de que é mesmo uma mulher que está ali (as análises à testosterona que têm afastado atletas femininas da competição são uma espécie de caricatura muito real desta perspetiva), e uma mulher heterossexual.
Em 1978, a americana Emily Wughalter cunhou a expressão "the female apologetic" ("o pedido de desculpas feminino") para descrever um fenómeno que no seu entender leva as atletas a tentar compensar a "falta de feminilidade" que estaria implícita na sua prática e no seu corpo, e que levantaria a "suspeita" da homossexualidade, com equipamentos "femininos", maquilhagem, joias - e mesmo certas escolhas desportivas, como os segmentos de dança mais insinuantes ou graciosos da ginástica.
Um fenómeno que segundo a investigadora canadiana Elizabeth Hardy, que analisou os papéis de género nos JO de 2016, no Rio de Janeiro, é claramente reforçado pelos media: dá o exemplo da cobertura das provas de voleibol feminino como estando muito mais focada nos corpos das atletas que nas suas proezas, passando, para as próprias e para o mundo, a ideia de que é mais importante serem estereotipadamente atraentes que boas desportistas.
A normalidade com que por exemplo o já referido comentador de atletismo da RTP apontou várias vezes, durante o JO de Tóquio, a beleza dos corpos das atletas, sem uma única vez fazer algo de semelhante com os competidores masculinos, confirma a análise de Hardy - mas as reações indignadas nas redes sociais a esse facto demonstram que, como reconhece Virgínia Ferreira, "há mais feminismo difuso na sociedade" e "mais consciência de que o cânone "graça e beleza" não é o único aceitável para a feminilidade."
Talvez a meta, para as atletas, como para todas as mulheres, esteja a ficar mais próxima.