Que rota segues Ocidente? "Se investes em armas e não no futuro dos filhos?"

Três horas depois de ter aterrado em Lisboa, no auditório do CCB, o Papa Francisco inquietava o mundo, dirigindo-se em especial aos políticos do Ocidente, da Europa e da União Europeia. Questionando-os a todos: "Para onde navegam se não oferecem caminhos de Paz?"
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O auditório estava cheio. No palco apenas duas cadeiras, a do Papa Francisco e a do Presidente da República, sem flores ou outros ornamentos, apenas a simplicidade. Na primeira fila, o primeiro-ministro António Costa, acompanhado da mulher, e outros membros do Governo, e da Igreja. O resto da plateia era composta por outros membros do Corpo Diplomático, figuras da sociedade civil, do mundo e da cultura.

Passava pouco das 12:30 quando Francisco iniciava o seu discurso, aguardado por muitos e que, mais uma vez, acabou por surpreender, podendo mesmo dizer-se que a tónica principal foi uma crítica aos próprios políticos, da Europa e da União Europeia, do Ocidente e, no fundo, do mundo inteiro, sobre o que andam a fazer, perante o poder que têm, se optam por investir em fábricas de armamento, numa alusão à Guerra na Ucrânia, em vez de investir nos filhos e nas famílias, lembrando que "os jovens são o futuro" e que todos temos "a obrigação" de "trabalhar para o bem comum", "deixando para trás contrastes e diferenças de visão!".

Mas a mensagem final é de "esperança" na construção de um mundo de pactos globais quer para o ambiente, quer na educação, quer para a migração e para a inclusão, acreditando que, "Lisboa, capital do mundo", como disse, possa tornar-se num marco da mudança, já que é um exemplo também, na convivência entre povos, fazendo mesmo alusão ao Bairro da Mouraria, onde 60% dos habitantes de diferentes países.

Durante mais de 20 minutos, Francisco, grande comunicador, expressou palavra a palavra, de forma pausada, dando sentido a cada uma e suscitando reações, até efusivas, da plateia. Sabia para quem estava a falar, para muitos decisores, mas nunca esqueceu o passado e a cultura do país e da cidade onde está.

As primeiras palavras foram de saudação, dizendo que estava "feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal; torna-se, de certo modo, a capital do mundo", acrescentando que esta característica "condiz bem com o seu caráter multiétnico e multicultural (penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países) e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes".

Aqui surge a referência aos Lusíadas, ao poeta L. Vaz de Camões, ao passado, ao lembrar que muito perto daqui, no Cabo da Roca, "está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: 'Aqui... onde a terra se acaba e o mar começa'", para dizer que é aqui, neste país, que a terra "confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: «Lisboa tem cheiro de flores e de mar».

De Camões passou para a fadista Amália Rodrigues, recordando o "Cheira bem, cheira a Lisboa", e depois para Sophia de Mello Breyner, dizendo que "o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim». E é à vista deste oceano, que faz um apelo à reflexão, aos portugueses e ao mundo, sobre o sentido da vida, sobre o que liga os povos e os países, as terras e os continentes e com a ideia de que as fronteiras entre estes não deve servir como um limite, um obstáculo, mas como "zonas de contacto", porque "o mundo, diante de problemas comuns, mantém-se dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios".

E nesta altura que compromete Lisboa e os políticos portugueses, ao afirmar que "Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo", porque aqui, em 2007, foi assinado aqui o homónimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que «a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos» (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1); mas vai mais longe afirmando que, «nas suas relações com o resto do mundo (...), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos» (art. 1,4/2.5)".

Francisco faz questão de sublinhar que este Tratado "não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminho da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Este é o espírito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental".

Afirmando ainda que "o certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o «velho continente», velho, digamos, continente antigo, um impulso de abertura universal".

As suas palavras continuam no sentido do que o mundo precisa, e "o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo e inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais tortas da realidade".

O mundo de hoje navega "momentos tempestuosos", disse o Papa. "Sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, alargando o campo: Que rota segues, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o Estado social".

O Papa manifestou a sua preocupação ao ler, "em muitos lugares, que se investe continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Investe-se mais nas fábricas de armas do que no futuro dos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, com a própria cultura, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas. Aqui penso no pai fundador da União Europeia, que sonhava em grande".

Passando a abordar um dos seus temas queridos, o ambiente e as alterações climáticas. "No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos".

Questionando mesmo: "Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar? Penso em tantas leis sofisticadas sobre a eutanásia..."

Mas, Lisboa, dizia Francisco oferece-nos motivos de esperança e para esperar. "Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois - como se diz por aqui - «ao lado dos jovens, não se envelhece». Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho - a esperança da vida. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é uma ocasião para construir juntos".

Daqui espera que saia "o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro", citando Fernando Pessoas com «Navegar é preciso; viver não é preciso (...); o que é necessário é criar». Pedindo que se trabalhe "com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção da esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade", sublinhando que "o oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?"

Antes de terminar o discurso no CCB, Francisco deixa a imagem dos estaleiros, como alusão, mais uma vez, ao país mais Ocidental da Europa, com mais de 800 Km de Costa. O primeiro estaleiro é o Ambiente, o segundo é o futuro, e estes são os jovens, e o terceiro e é a fraternidade. E sobre o futuro e os jovens, interroga mesmo como será este possível se estas gerações têm "muitos fatores que os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. "

E deixa um recado aos políticos: "A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos". A boa política é hoje chamada para "voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos".

O importante, diz, "é a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social". No final, aplaudido de pé e com vivas ao Papa, Francisco deixa um agradecimento: "Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes. Sintamo-nos chamados, todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnífico país. Deus abençoe Portugal!"

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