Em janeiro de 1974, Carrazedo, então uma aldeia, gelava. O meu pai, camionista, apesar do mau tempo, pouco parava em casa e a minha mãe tomava conta dos filhos: sete. Três raparigas e quatro rapazes. Tirando a minha irmã do meio, que fez a telescola, nenhum de nós passou da 4.ª classe. Não pudemos estudar mais do que os meus pais..Nesse ano, eu, a mais velha das minhas irmãs, era contínua numa escola primária. Ganhava, se não me engano, 300 escudos. Entrava às 9.00 da manhã, depois do pequeno-almoço. Uma sopa. Os meus irmãos preferiam cevada, fervida à lareira numa cafeteira de barro, pão e doce..Nunca tivemos luxos, mas na nossa mesa nunca faltou comida. No primeiro mês de cada ano, a alimentação era feita à base de fumeiro (matavam-se os porcos em dezembro). Na nossa cozinha havia as ramadas, varas com fumeiro suportadas pelas traves do teto, sobre as lareiras, permitindo que alheiras, salpicões e linguiças fumassem. De vez em quando, do alto, caiam pingos de gordura na nossa cabeça. Comíamos muito bacalhau. A carne guardava-se em salgadeiras. Naquele tempo, em minha casa, não havia frigorífico..Nas terras altas, janeiro é sempre um mês de muito frio. Por vezes, nevava. A lareira aquecia a cozinha e botijas de latão, com água a ferver, tornavam as camas mais confortáveis. Para as mãos, usávamos pequenas pedras aquecidas ao lume, metidas em meias velhas..Na altura, as calças estavam na moda. E, no inverno, eram ainda mais desejadas. Em minha casa, ousávamos vesti-las apenas na ausência do meu pai. O mesmo se aplicava, no verão, às minissaias, feitas, tal como as calças, pela costureira da aldeia..Quem também se metia no assunto era o padre, muito dado a comentários recriminatórios das saias curtas, dos decotes, das calças. Muitas vezes feitos no decorrer da missa. Já não sou do tempo de pedir a bênção ao padre, mas, em 1974, ainda a pedia aos meus pais. Tratava o meu pai por senhor e a minha mãe por senhora..Usava-se o cabelo comprido. Como não tinha secador de cabelo, recorria a truques. Para alisar, colocava o cabelo sobre uma mesa, protegido por um pano, e passava-o a ferro, um ferro a carvão, como se fosse uma peça de roupa. Para ondular, enrolavam-se as mechas em garfos aquecidos ao lume. Já havia maquilhagem, mas só as ricas a tinham. Eu usava a ponta de carvão do lápis de escrever para fazer um risco nos olhos..Em minha casa não havia televisão. Naquele tempo, os domingos de janeiro eram passados com amigos, a comentar os relatos de assombrações e “aparições” do outro mundo - todas as semanas sucediam coisas estranhas -, a passear por pomares e soutos ou, na berma da única estrada alcatroada da aldeia - a estrada nova -, a ver passar os carros. Um deles era especial - a carreira que trazia o correio que seria distribuído às 17.00 horas do dia seguinte. Ou, ainda, em casa de quem tivesse gira-discos, a ouvir Roberto Carlos, sempre ansiosos que chegasse o mês de agosto para estrear o vestido e os sapatos novos na Festa de Santa Bárbara, a padroeira da terra..Não me lembro de estar doente, na verdade, tenho a ideia de que naquele tempo, com 20 e poucos anos, pouco ou nada adoecíamos. Mas quando acontecia, ia-se ao Dr. Júlio. Uma figura muito querida na terra. Procurada por todos, menos pela maioria das grávidas. Por vergonha, recorriam a parteiras, o que levava muitas vezes à morte de mães e de recém-nascidos..Não tenho saudades do atraso desses dias (quando uns meses depois, a caminho do trabalho, ouvi dizer que estava a haver qualquer coisa em Lisboa, não imaginava o quanto esse “qualquer coisa” iria mudar as nossas vidas para melhor). Mas tenho muitas saudades de ter 22 anos..Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles