Onde eu estava... por Ana Paula Martins

Onde eu estava... por Ana Paula Martins

Engenheira civil, aposentada, ex-quadro técnico das Comissões de Coordenação da Região Norte e da Região Centro, das Câmaras Municipais de Oliveira de Azeméis e do Porto.
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Em janeiro de 1974 eu tinha 17 anos, estudava no Liceu Nacional de Aveiro (agora Escola Secundária José Estevão), no então designado “sétimo ano”, o último do secundário. Estava numa turma especial, mista, porque tinha decidido optar por “Matemática Moderna”, uma inovação que o regime proporcionou a quem quisesse seguir a área de ciências. O sufocante “Liceu das meninas” ficara felizmente para trás e, desde há um ano, sentia uma certa descompressão por haver temas novos nas conversas, novos amigos, novas cumplicidades. Vivia um quotidiano pacato, do Liceu para o Conservatório (aulas de piano, história da música), e depois para os treinos de basquete no meu muito amado Galitos e, às vezes, para o Coro da paróquia da Glória. Nos intervalos, parava na Biblioteca Municipal, um sítio calmo e central onde podia adiantar trabalhos escolares. Vivíamos à entrada da cidade, numa moradia que os meus pais tinham conseguido construir uns anos antes (ela professora, ele empregado fabril), deslocava-me de autocarro, boleia da mãe, ou bicicleta, um pouco conforme a meteorologia: não era muito prático pedalar com saias de pregas e meias até ao joelho, naquele tempo de insuportáveis mirones.

A vida corria tranquila e aparentemente previsível. Mãe professora de ginástica, um turbilhão de energia e criatividade, pai empregado na “Celulose”, ateu convicto, calmo e discreto, nenhum deles arriscava, apesar de tudo, sair da norma. A minha irmã adolescente, e eu, sabíamos bem as regras: dinheiro contadíssimo, eventual roupa nova apenas no aniversário, almoço fora ao domingo e era quando era, a fastidiosa missa (onde íamos em jejum, quase desfalecidas, para podermos comungar!), a ida à pesca e ao futebol com o pai se ele estivesse com pachorra, chegar a horas a todo o lado, em especial para jogar basquete – jogos da Federação, mas a que ninguém assistia – com equipamento costurado em casa e umas Sanjo de má memória. Contudo, havia nichos de felicidade aqui e ali: o Coro organizava de tempos a tempos uns retiros (rapazes e raparigas) e encontros que, sob a asa de uma pretensamente renovada igreja, nos proporcionavam discussões temáticas estimulantes (e lanches, muitos lanches), a biblioteca caseira do meu pai estava ali, escancarada e à mão, repleta de Aquilino, Namora, Redol, Steinbeck e Proust. E, noite fora, no sossego do meu quarto, ouvia enquanto estudava um programa de música especialíssimo (como se chamava?...) num aparelho de rádio antigo que me foi permitido guardar.

Em janeiro de 1974 pairavam no Liceu nuvens cinzentas. Eu não tinha na minha cabeça o filme completo, mas percebia-se um cerco diário a colegas que haviam cometido audaciosos crimes: fumar no recreio, comer as laranjas do jardim, permanecer sentados à passagem do reitor, juntarem-se algures em reuniões “esquisitas”, subir centímetros à mini saia. Os pais eram humilhantemente chamados à escola, as ameaças de suspensão sobre alguns de nós (impedimento obrigatório e temporário) tornaram-se inequívocas. Começava, lenta e quase ingenuamente, a consciência do absurdo.

Texto recolhido por Alexandra Tavares Teles

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