“Em março de 1974 estava grávida de seis meses. Ao fim de de seis anos de casamento e muita angústia finalmente engravidara. Mas, em mim, ecoavam ainda as palavras da mãe do meu marido. “A minha nora nem um filho consegue dar ao meu filho”. Era para isso que as mulheres serviam. Uma inútil, é o que eu era. Ora eu queria ser mãe. Mas queria ser mãe porque sim, não porque devesse ou achasse que era essa a minha obrigação. A culpa da infertilidade recaiu, claro, sobre mim. E assim continuou, mesmo quando se descobriu, numa clínica de Joanesburgo, que o problema estava no meu marido..Em março de 1974 tinha 23 anos e morava em Carnaxide. Estava grávida, mas nem por isso tão feliz quanto seria suposto. Vivia dias estúpidos, fechada em casa, proibida pelo meu marido de trabalhar ou de continuar os estudos. O Curso Geral do Comércio, tirado era ainda solteira, de nada me servia, apesar de não nadarmos em dinheiro..Nesta fase, F., piloto da Escola Náutica, raramente saía de casa. Apenas o fazia para ir às consultas de psiquiatria, tentando resolver traumas causados devido ao que passou como imediato de um navio encalhado, ao largo de Inhambane, Moçambique. Consumido a remoer aquilo, para ele, eu e a minha gravidez não existíamos..As idas ao cabeleireiro ou ao banco, em Algés, eram os momentos altos do mês. A viagem de camioneta sabia-me bem. Usava creme Nivea, comprava roupa na Por-fí-ri-os e sapatos na sapataria Mariazinha, tudo muito poupado, porque o dinheiro não abundava..Na maior parte dos seis anos que levava de casamento limitara-me a esperar. A esperar uma gravidez, a esperar que o F. chegasse das suas viagens. A primeira de muitas, ocorreu quando estávamos casados há apenas dois meses..Quantas vezes ao longo daqueles anos desejei fugir de um casamento que me tornava infeliz e de um país que proibia o divórcio. Mas até para comprar um bilhete precisava da autorização do meu amo. Era assim que me sentia: propriedade de um homem. Por vezes violento..O meu pai praticava o lema “entre marido e mulher não se mete a colher”. A minha mãe aconselhava-me juízo, dizia-me que eu tinha feito um bom casamento. Que mais poderia esperar uma rapariga senão um rapaz bem parecido que lhe enchia a casa de tudo?.A família justificava-lhe o feitio irascível com a frustração de ainda não ter conseguido ser pai. Mais uma vez, a responsabilidade era minha. Era minha a culpa de ele ser violento..Em 1972, devido a uma comissão mais longa em Moçambique, quis que o acompanhasse. Em agosto de 1973, fomos a Johannesburg para exames e tratamento. A 25 de Setembro de 1973, embarcou para mais uma viagem. Nesse preciso dia, um tufão provocou o encalhamento do navio. Sem autorização da Companhia Nacional Marítima para abandonar o barco, a tripulação tentou salvar a embarcação. Três meses terríveis. Todos os fins de semana, acompanhada da mulher do Chefe de Máquinas, percorria 14 quilómetros de praia levando alguns alimentos e água potável. Foi numa dessas visitas que engravidei do único filho que temos..Regressámos a Lisboa no dia 25 de janeiro de 1974. Em março, a 16, soube do levantamento das Caldas, fracasso que levou à prisão de vários capitães do movimento. Sabíamos que havia descontentamento nas forças armadas, não acreditávamos que o regime estivesse prestes a cair..O meu filho nasceu a 8 de julho de 1974. Passei por vários altos e baixos desde o seu nascimento até hoje, dia em que desabafo. Tive de ser pai e mãe. O meu marido morreu há três décadas. O meu filho vive na China. Neste ano em que se comemoram 50 anos do 25 de abril farei 74. Não foi fácil encontrar um equilíbrio. Posso dizer que consegui”.