O Papa que agarra o braço das pessoas
ETTORE FERRARI/EPA

O Papa que agarra o braço das pessoas

Nem a pompa da cerimónia de entronização mudou o estilo do novo pontífice. Sob os olhos do mundo, o líder da Igreja reiterou a ideia de uma simplicidade exemplar.
Publicado a
Atualizado a

O DN republica hoje, dia da morte do Papa Francisco, um texto de 2013 assinado pelo então Grande Repórter do DN (e Diretor entre 2018 e 2020), Ferreira Fernandes.

Com menos de uma semana de eleito, o Papa Francisco já vai com três enchentes na Praça de São Pedro. E só na primeira, em breve momento, foi uma deceção. O cardeal Tauran anunciara habemus papam e que este era “Georgium Marium Bergoglio” e da multidão, que esperava um italiano ou um brasileiro, fez- se um silêncio de ter sabido apouco. Logo depois, aparecendo pela primeira vez aos fiéis, o novo Papa desfez a desilusão com um termo coloquial: Buonanotte, disse aos que ainda não eram seus e seus se tornaram. Seguiram- se poucos dias de uma campanha vitoriosa, que o é tanto mais quanto não parece campanha. Francisco parece vender simplicidade com o à-vontade dos simples.

No Angelus, segunda enchente, domingo, falou de uma nonna (“é assim que na minha terra lhes chamamos, avozinha...”, explicou, com os parênteses a que já nos habituou nos seus discursos) que encontrou em Buenos Aires durante a visita da Senhora de Fátima, em 1992, e nonna que lhe dizia coisas tão certas da Igreja que “lhe disse: ma, estudou na Gregoriana!”, exclamou Francisco. Diálogos simples destes, mas que atiram pérolas que exigem atenção: Gregoriana? Sim, a universidade de Roma que foi a primeira escola jesuíta... Para que se saiba que um Francesco pode sê- lo em honra dos franciscanos, o dos pobres, mas não é por isso que esquece a sua própria ordem de origem, a Companhia de Jesus, que preza a aristocracia dos intelectuais. E, finalmente, a enchente de ontem, a da missa de entronização, aquela em que, perante os poderosos do mundo, o Papa inicia o seu pontificado. De todas as aparições em São Pedro, esta seria aquela em que o Francisco estaria mais fora da sua praia. Era dia de cerimónia pomposa, como a Roma pontifical, herdeira da imperial, gosta e sabe. Mesmo assim, o estilo de Bergoglio impôs-se no que pôde. O jeep era aberto – e ele, pousando os olhos num e noutro eleito da sua atenção, sempre com um interlocutor, por quem, porque mesmo devagar o jeep avançava, virava a cabeça para trás para acabar o cumprimento. E o anel do Pescador que o decano dos cardeais, Sodano, lhe deu não era de ouro como sempre foi, mas menos nobre, de prata. E entre os concelebrantes da missa, os habituais cardeais e patriarcas dos ritos orientais, estavam também, novidade histórica, os superiores- gerais dos franciscanos e dos jesuítas... E, na homilia, a repetição, por quatro vezes, de uma palavra esquecida: “Ternura.”

Mas, quanto ao mais, a sacralização da função e as regras litúrgicas. Uma coisa é andar com sapatos pretos e velhos, de que Bergoglio faz questão, outra é abandonar a imposição do pálio e o Evangelho cantada em grego. E como tudo é belo, numa praça belíssima, naturalmente a multidão aceita o seu Papa, já campeão dos simples, no cerimonial de um dia que não são dias. Mas entre os fiéis er- guiam- se duas bandeirolas que lembravam ao novo Papa as esperanças com que ele os aqueceu. Uma, era um piscar de olho ao primeiro dia de namoro: “Buongiorno, Francesco!” Outra, o prolongamento da “Igreja dos pobres”, a frase programa a que o Papa se obrigou: “Francisco, repara a minha casa!” – alusão à lenda de Francisco de Assis, frente a uma capela em ruínas, ouvindo o pedido de Deus: “A minha casa está em ruínas, repara- a para mim!” Em ambas, o Papa a ser cobrado.

Findo o cerimonial, Francisco entrou na Basílica de São Pedro, onde os grandes deste mundo iam saudar o colega chefe do Estado doVaticano. Aqui, mais uma vez, o Papa parecia poder vir a ser apanhado em contramão do homem humilde e simples que se quis mostrar durante a meia dúzia de dias em que é estrela mundial. E, no entanto, aconteceu o que faria a felicidade de um assessor de imagem. “Este homem é autêntico!”, decretou um romano comum, desses que não tiveram direito de participar nos cumprimentos, e assistia pelo direto daTV, num café da Via Borgo Pio, a dois passos do que se passava na basílica. Tal como fizera na Capela Sistina quando os cardeais juravam obediência ao recém- eleito e ele os recebeu de pé, ontem, Bergoglio desdenhou o trono que a tradição lhe dá para aceitar os cumprimentos.

De pé, Francisco defrontou uma fila que esperava, olhava à volta as estátuas majestosas de papas, assinadas por grandes artistas, e desembocava num homem vestido de

“Este homem é autêntico!”, decretou um romano comum

branco e de sorriso. Para este, de pé durante quase duas horas, o padre luso- canadiano José Avelino Bettencourt, de 50 anos, chefe de protocolo da Secretaria de Estado do Vaticano, sussurrava o nome e o cargo do próximo visitante. E a cada novo cumprimento o padre Bettencourt não sabia mais como apressar o encontro. Porque o Papa encontrava- se, mesmo, com cada um que vinha vê-lo.

E se o primeiro-ministro francês Ayrault, não querendo incomodar mais, partia, Francisco chamava a mulher dele para dar uma última palavra, e se o desconhecido lituano pensava que lhe bastavam as curtas palavras que trazia artilhadas, Francisco agarrava no braço do tradutor para fazer perguntas, e se Cristina Kirchener parecia mais tensa do que no encontro da véspera com o compatriota ( que lhe dera, então, “o primeiro beijo de um Papa na minha vida”), Francisco sorria, e se o dignitário africano dizia alguma coisa para rir, Francisco ria... Cada homem e mulher, neste lugar histórico e momento solene, teve direito a encontrar um outro homem. Se isto não é respeito pelos homens, ide assistir a uma sessão de cumprimentos do corpo diplomático em qualquer país.

É verdade que mudar o Vaticano ( a Igreja que precisa de obras) é muito mais difícil do que mudar o estilo de ser Papa. Mas o homem que em tão poucos dias se impôs como simples mereceu a esperança do escritor Marco Roncalli, sobrinho- neto de um outro papa amado, João XXII, biógrafo de alguns papas contemporâneos, respondeu, ontem, quando lhe pediram um prognóstico: “Não vai ser um pontificado de passagem.”

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt