O livro que fez tremer o Estado Novo e anunciou o golpe de 25 de Abril

O livro que fez tremer o Estado Novo e anunciou o golpe de 25 de Abril

Portugal e o Futuro, o livro do general António de Spínola editado faz hoje 50 anos, além de um raro êxito de vendas, foi um valente murro nos queixos do regime do Estado Novo. A ditadura não aguentou o golpe: caiu de joelhos, sem reação, dois meses depois.
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Nunca se tinha visto uma coisa assim: os 50 mil exemplares da primeira edição do livro de Spínola, um número astronómico para a época, desapareceram num ápice das livrarias. Foi colocado à venda na manhã de 22 de fevereiro, faz hoje 50 anos, e à hora do almoço já tinha esgotado em Lisboa. Até final do ano - recorda António Valdemar, prestigiado jornalista que trabalhou na revisão do livro -, Portugal e o Futuro terá vendido em todo o país cerca de 230 mil exemplares.

O livro ficou para a história - pelo interesse que despertou, pelo número de exemplares vendidos, pela importância política que teve. Foi um fortíssimo murro nos queixos da ditadura. O regime, atordoado, nunca mais se recompôs do golpe implacável desferido por um general de monóculo entalado no olho direito  - e cairá de joelhos, dois meses depois, na quinta-feira de 25 de abril. 

Marcello Caetano, o académico que sucedeu a Salazar, leu o livro dois dias antes do lançamento. Fê-lo no sossego da sua casa de Alvalade. Jantou com a filha, Ana Maria, recolheu ao escritório - e começou a ler. Ficou abalado. “Não larguei a obra antes de chegar à ultima página, por alta madrugada. E ao fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado era inevitável”, escreveu em Depoimento, livro de memórias que publicou nos tempos do exílio no Brasil.

Salazar enganou-se sobre Spínola, em 1968, ao desafiá-lo a trocar o conforto do gabinete de segundo comandante-geral da GNR pela humidade pegajosa de Bissau. O homem do monóculo já não era o mesmo  que sete anos antes, ao estalar da Guerra Colonial, se ofereceu voluntariamente para combater em Angola. Era então tenente-coronel. Embarcou à frente do Batalhão de Cavalaria 345 fiel à presença portuguesa em África. Cobre-se de glória e prestígio. Os soldados olham o seu comandante com pavor e admiração: sai para o mato, participa em combates, come o que comem os seus homens - comportamento nunca visto num oficial superior. Regressa à metrópole, terminada a comissão, convencido de que a derrota será inevitável sem uma solução política.

Os telegramas oficiais enviados de África, no início de 1968, são desanimadores para o regime.  A guerra corre sem fim à vista. Cresce o mal-estar na cúpula das Forças Armadas minada por recriminações entre os ministros militares. Os generais Gomes de Araújo, da Defesa, e Joaquim Luz Cunha, do Exército, e o almirante Quintanilha Dias, da Marinha, recriminam-se em privado  pelo fracasso que já ninguém é capaz de disfarçar: cada um tem a sua corte de amigos que alimentam intrigas, boatos, maledicência. As piores notícias têm origem na Guiné - onde as dificuldades das tropas portuguesas nunca deixaram de se agravar ao longo da missão do general Arnaldo Schultz, entre 1964 e 1968, como governador e comandante-chefe. 

A Guiné está então à beira da derrota militar. Salazar teme que se repita na colónia o mesmo que aconteceu na Índia - a rendição. Manda chamar Spínola e dá-lhe guia de marcha para África:  “É urgente que parta para Bissau”, diz-lhe Salazar, seguro de que Spínola apoia o regime sem reservas. Mas o cabo de guerra já tinha rompido com a política ultramarina do Estado Novo. 

Conspiração em Bissau

Ao entregar em 1968 o governo e o comando militar da Guiné ao brigadeiro António de Spínola (será promovido a general em julho do ano seguinte), Salazar estava longe de prever que a escolha iria apressar o fim do regime. Nesta colónia, onde os dias da guerra corriam mais bravos e violentos, germinam os grãos da revolta. O quartel-general de Bissau fervilhava em conspiração contra a política ultramarina e a manutenção das colónias a todo o custo. 
O capitão miliciano José Manuel Barroso - que passara a concordar com o tio Mário Soares perdidas as ilusões no Partido Comunista - chegou à Guiné em 1972. Não esperava o que lá foi encontrar: “O quartel-general tinha o ambiente contestatário de uma universidade”, recorda ao DN.  Não se conspirava às escondidas do comandante-chefe: conjurava-se com ele. O seu ajudante de campo, Almeida Bruno, gritava pelos corredores para quem o quisesse ouvir: “Isto só lá vai à porrada”.

Spínola desembarca na pista de Bissalanca, nos arredores de Bissau, em 24 de maio de 1968, na dupla condição de governador e de comandante-chefe. Chega pela tarde - uma tarde húmida e abafada - e faz o seu primeiro discurso - um discurso diferente: proclama o seu empenhamento numa ação “essencialmente baseada nos princípios da justiça social e do respeito pelo valor e dignidade da pessoa humana”. Nas funções de governador mudou a política, na condição de comandante-chefe alterou a estratégia. Nada na Guiné ficou como antes.

É agora um político - ou, pelo menos, pretende sê-lo. Tenta fazer crer que a sua principal preocupação não é tanto a pura ação militar, mas a urgência de pôr em marcha uma nova política com vista ao bem-estar das populações de modo a retirá-las ao controlo da guerrilha. 

Mas o PAIGC está forte, bem armado, ameaçador - tanto assim que as tropas portuguesas tinham perdido a iniciativa. Spínola percorre a Guiné, visita todas as unidades, verifica a precariedade das tropas perante um adversário cada vez mais moralizado. A razão da inércia - segundo o comandante-chefe - está na incompetência que atribui a vários oficiais do quadro. Manda-os embora. Conseguirá reunir na Guiné um punhado de militares de exceção. Spínola segue uma doutrina muito própria. Altera o dispositivo militar de acordo com uma doutrina muito própria: concentra os meios disponíveis nas zonas que são para manter e não insiste no desgaste inútil de forças em áreas  difíceis e sem interesse estratégico.  Fiel a este princípio, abandona, por exemplo, a região de Madina do Boé, no extremo sueste. Cria “zonas de intervenção do comandante-chefe”em áreas de forte domínio da guerrilha. Sucedem-se as operações de “curta duração e de grande violência”.

Contra o regime

As tropas portuguesas  conseguem inverter a situação. Obtêm na Guiné, entre 1968 e 1971, as maiores vitórias de toda a Guerra Colonial. O movimento da guerrilha passa agora por grandes dificuldades. 

Os êxitos militares, ainda assim, não perturbam o espírito do governador e comandante-chefe. Avança com um ousado projeto político de conquista das populações traduzido no slogan ‘Por Uma Guiné Melhor’: ouve os guineenses, nascem os Congressos do Povo, onde têm assento representantes das diversas etnias que o aclamam como o “Homem Grande da Guiné”. Os congressos, que passam a realizar-se anualmente a partir de 1970, constituem manifestações de democracia representativa numa colónia de um regime avesso à liberdade. 

Aos seus oficiais não pede que ganhem a guerra: exige-lhes que não a percam - enquanto procura uma solução política. Encontra em África um aliado respeitável - o presidente do vizinho Senegal, Leopold Senghor, que fora um académico em França, homem de letras, poeta, respeitadíssimo nas democracias ocidentais. Além das qualidades políticas e humanistas, Senghor tinha ascendência portuguesa e era amigo de Amílcar Cabral, o moderado que liderava o PAIGC.

Spínola tinha todos os tiques de um marcial - monóculo, luvas, pingalim - e nisso era diferente de todos os generais. Mas a grande diferença - segundo Carlos Matos Gomes, ex-combatente na Guiné, escritor, co-autor de uma História da Guerra Colonial - “radicava no modo como assumia a componente política da guerra”. O general, “com a sua política de ‘Por Uma Guiné Melhor’ e pelo conceito de manobra assente na conquista das populações, abriu uma perspetiva diferente para a resolução da guerra. Tornou a Guiné um território onde era possível discutir  as opções do governo, como o general fazia. Os discursos e as diretivas operacionais de Spínola, onde ele explicava a sua ação, constituíam lições de aprendizagem política para os que necessitavam delas e de estímulo para os outros. Havia na Guiné, entre os militares a noção de que Spínola estava contra o regime”, diz Matos Gomes ao DN.

A desilusão

Mal são conhecidas as mudanças em curso na colónia, Leopold Senghor toma a iniciativa, ainda em 1969, de propor a independência da Guiné no quadro de uma grande comunidade luso-africana. Marcello Caetano, recém-chegado à chefia do Governo, e o seu ministro do Ultramar, Silva Cunha, ignoram a oferta - mas Spínola, em Bissau, leva em devida conta a proposta do respeitado líder africano.

Senghor, em  meados de 1971, faz saber através da diplomacia francesa que está interessado em discutir a questão colonial com o Governo de Lisboa. O Presidente do Conselho reage da pior maneira - e um assunto da mais alta importância acaba por ser tratado como um problema de paróquia.  Caetano envia a Dacar uma equipa de negociadores constituída por um representante da polícia política e um inspetor da administração colonial. Senghor não os recebe - mas não os manda embora: consente que tenham gentis e inconsequentes contactos de circunstâncias com figuras de terceira linha do seu governo. 

O presidente senegalês não desiste de influenciar uma solução para a Guiné. Pisca o olho a um encontro com Spínola. O general, autorizado por Marcello Caetano, desloca-se ao Senegal. O encontro, em 18 de maio de 1972, decorre em Cape Skirine, a escassas dezenas de quilómetros da fronteira norte da Guiné. Spínola e Senghor discutem uma solução de compromisso: cessar-fogo por um período de transição de 10 anos, após o qual seria sufragada uma solução para a Guiné - independência total ou integração numa federação no quadro de uma grande comunidade luso-africana.

Spínola voa para Lisboa. Tem um plano sério para acabar com a guerra. É recebido por Marcello Caetano, na última semana de maio de 1972. O general informa que o plano prevê que se encontre com Amílcar Cabral para negociação do cessar-fogo e acertar a integração de quadros do PAIGC na administração do território. O presidente do Conselho rejeita o plano de paz - e diz o que Spínola não queria ouvir: “É preferível sair da Guiné por uma derrota militar com honra, do que por um acordo negociado com os terroristas”. E proíbe-o de continuar com as conversações. O cabo de guerra volta ofendido a Bissau. Perdera todas as esperanças em Caetano. O presidente do Conselho, que em tempos defendera uma autonomia federalista para as colónias, alinha com os mais insensatos falcões do regime.

O general, amargurado, toma a decisão de escrever o livro. Andava hesitante desde 1971 - quando Franco Nogueira, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros e delfim de Salazar, tenaz defensor da continuidade das colónias,  lançou o livro As Crises e os Homens. O autor discorre sobre os valores e as verdades imutáveis de cada país - e, no caso português, a divina obrigação da permanência em África. A teoria de Franco Nogueira merecia uma resposta. Um ano depois, desiludido com Marcello Caetano, atira-se à escrita - e a pedir textos e sugestões aos mais próximos.

O capitão miliciano José Blanco, jurista e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, é em finais de 1972 o novo chefe de Gabinete do general Spínola. Um dia recebe  uma resma de folhas datilografadas das mãos do governador e comandante-chefe com uma solene indicação: “Leia isto e ajeite a forma”, recorda José Blanco ao DN. Cumpriu as ordens: “Li tudo. No dia seguinte, o general perguntou-me o que tinha achado. Respondi-lhe:  - Isto é uma bomba!. Ele riu-se, vaidoso”. O chefe de Gabinete recebe ainda outra missão: a de encontrar um título. “Entreguei a Spínola uma lista com 12 sugestões. Coloquei em último lugar a que eu mais gostava. Foi essa que o general escolheu”. Estava encontrado o título - Portugal e o Futuro.

A situação militar da Guiné agrava-se. O comandante-chefe volta a equilibrar a sorte da guerra. Mas ele sabe como poucos que o colapso militar será uma questão de tempo. Em Agosto de 1973, goza férias nas termas do Luso: aquelas águas fazem-lhe bem aos rins. Recusa ser reconduzido. Não mais regressará a Bissau. É um militar coberto de prestígio - e, por isso, um embaraço para o Governo: Marcello Caetano não sabe o que fazer com ele. Não quer deixá-lo escapar para a oposição. Spínola é o centro de todas as atenções - aliciado à direita pelo general Kaúlza, que planeia um golpe contra o “perigoso esquerdista” Caetano e à esquerda pelo movimento dos capitães, onde pontificam homens da Guiné e o mantêm informado a par e passo.

Caetano oferece-lhe, sucessivamente, a pasta do Ultramar, a Embaixada de Madrid, o comando da Academia Militar, a Inspeção-Geral das Forças Armadas. Spínola tudo recusa. A solução parte de Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, que propõe a criação de um novo cargo à medida do estatuto de Spínola - o de vice-chefe. Marcello agradece a ideia. Spínola aceita. Toma posse em 17 de janeiro de 1974.

Só então dá conta ao chefe do Governo da intenção de publicar o livro. Já tem acertado com o editor, Paradela de Abreu, da Arcádia. O livro já está a ser impresso, no maior dos segredos, para evitar a intromissão da política política. O jornalista António Valdemar, num andar arrendado pela editora, trabalhara com todas as cautelas na revisão das provas - e redigirá textos  que serão entregues, com todos os cuidados conspirativos, no vespertino República e no semanário Expresso para saírem em forma de notícias nas vésperas do lançamento. Valdemar ainda hoje se lembra do que lhe disse Paradela de Abreu quando lhe entregou uma pasta com as provas tipográficas do livro: “Você tem aí a revolução”.

O chefe do Governo pede a Spínola para ler o livro. O general não lhe faz a vontade. Só aceita submeter a obra ao seu superior hierárquico, Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Costa Gomes, de partida para uma viagem de trabalho a Moçambique, leva um exemplar do Portugal e o Futuro. No regresso, dá parecer favorável à publicação - mas submete o assunto à consideração superior do ministro da Defesa, Silva Cunha. O ministro adivinha tempestade. Acha melhor proibir o livro. Fala com o chefe do Governo. Caetano prevê ainda uma maior tempestade se impedir a publicação. Mal sabiam eles que o livro - segundo António Valdemar - “seria editado em Paris no caso de ser proibido em Portugal”.

Otelo Saraiva de Carvalho - que Spínola estimava desde os tempos da Guiné - recorda em Alvorada em Abril o que lhe ouviu quando o visitou no Estado-Maior General, no palácio da Cova da Moura: “Deixem-me publicar o livro e depois vamos ver como eles reagem quando o apanharem pelos queixos”.
Foi mesmo nos queixos. Em cheio!


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