A Ordem dos Médicos (OM) mudou de bastonário, mas a posição de Carlos Cortes em relação à despenalização da morte medicamente assistida em nada difere da do seu antecessor. O novo responsável da OM não só é contra, como, a título pessoal, mantém a recusa em designar um representante para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA). Esta será a entidade responsável por confirmar o cumprimento de todos os passos legais, em cada processo individual de eutanásia ou suicídio assistido, cabendo-lhe a autorização final para que a morte medicamente assistida se possa concretizar..Carlos Cortes diz que esta é uma questão que "está em análise" pela atual direção da Ordem dos Médicos, "no plano ético e no plano jurídico", sendo expectável uma decisão dentro de semanas. Mas, a título pessoal, o atual bastonário não tem dúvidas em acompanhar a posição expressa pela anterior direção da OM, liderada por Miguel Guimarães. "A posição do bastonário é de não nomear ninguém para a comissão" de Verificação e Avaliação da morte medicamente assistida, diz Carlos Cortes - "Eu não nomearei ninguém"..A Ordem dos Médicos avisou que se recusaria a designar um representante para a CVA, pela primeira vez, em junho de 2020. Numa carta dirigida ao presidente da Assembleia da República e à comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, o então bastonário, Miguel Guimarães, argumentou que "todos têm o direito de resistir a quaisquer ordens que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias" - o que é o caso, sustentava a argumentação da OM, dado que as responsabilidades atribuídas aos médicos por esta lei "violam as leges artis, a ética e a deontologia médicas". Razão pela qual, dizia o parecer, a OM "se recusará a indicar ou nomear médico(s) para qualquer comissão que a legislação preveja e/ou a praticar qualquer tipo de ato do qual resulte uma colaboração e/ou participação, direta ou indireta, da Ordem dos Médicos em procedimentos preparatórios e/ou de execução de atos de antecipação da morte a pedido ou da morte medicamente assistida, na vertente da eutanásia e da ajuda ao suicídio". Uma rejeição repetida dois anos depois, com o reenvio da mesma missiva para a Assembleia da República..Nesta altura já é certa a promulgação da despenalização da morte medicamente assistida, dado que o texto vetado por Marcelo Rebelo de Sousa em abril foi confirmado na última sexta-feira por uma maioria absoluta de 129 deputados. Uma votação que obriga o Presidente da República a promulgar - o que Marcelo Rebelo de Sousa já disse que fará. Uma vez publicada em Diário da República, o Governo terá então 90 dias para promulgar a lei, que entrará em vigor 30 dias depois de publicada a regulamentação. Depois, será preciso criar as condições operacionais para que a morte medicamente assistida possa ser concretizada e é aqui que, a concretizar-se esta recusa da OM, o processo pode sofrer algum entrave..Isabel Moreira, deputada do PS que tem sido um dos principais rostos da futura lei, e que é também constitucionalista, não quer pronunciar-se nesta altura, quando o processo legislativo na Assembleia da República está terminado e o decreto está prestes a seguir para Belém. Mas Isabel Moreira já se referiu antes às objeções levantadas pela OM, lembrando que, no dia em que for lei, a nova legislação terá de ser cumprida..Pedro Costa Gonçalves, especialista em Direito Administrativo, não tem dúvidas de que a OM terá de designar um representante para a CVA. Ainda que salientando não conhecer em detalhe esta questão em específico, o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sublinha que, uma vez perante um diploma aprovado no Parlamento e promulgado pelo Presidente da República, a "lei tem de ser cumprida". E esta é uma realidade à qual a Ordem dos Médicos não pode fugir. Se a lei atribui à OM a responsabilidade por uma designação, essa "competência não é disponível": "As competências não são direitos, são poderes/deveres. Se essa competência é entregue à OM isso significa um dever". Para mais, tratando-se de uma entidade pública. "As instituições públicas não podem discordar do legislador e das ordens que o legislador lhes impõe", diz Pedro Costa Gonçalves. Se, ainda assim, a OM se recusar a fazer o que a lei estipula, então será um caso de tribunal, mediante a designada ação de condenação à prática de atos..Além da autorização final, caberá à CVA elaborar o relatório de avaliação de cada caso de suicídio assistido ou eutanásia, bem como a apresentação anual, à Assembleia da república, de um relatório com informação estatística sobre a morte medicamente assistida. A entidade será constituída por cinco membros: dois juristas, a designar pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior do Ministério Público; um médico designado pela OM; um enfermeiro designado pela respetiva Ordem; e um especialista em bioética designado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida..susete.francisco@dn.pt