O que Aveiro tem? Desde um spa de sal até à roupa no estendal
Passam poucos minutos das 09.30, quando os primeiros turistas começam a dirigir-se aos cais de embarque para os passeios de moliceiro pela ria de Aveiro, conhecida por muitos como a "Veneza de Portugal". São denunciados pelos chapéus de palha, as mochilas nas costas, as máquinas fotográficas ao peito ou os smartphones em punho. Em diferentes idiomas, procuram saber o preço do "cruzeiro" e a duração da viagem. A maioria fica na fila, mas há quem opte por palmilhar as ruas. É que algumas visitas à cidade duram apenas duas horas.
A neblina matinal ainda não deixa passar um único raio de sol. Pode não ser o cenário ideal para fotos, mas há quem não tenha tempo para esperar. Na rua que se estende da Ponte Praça - Pontes, para os locais - até ao Jardim do Rossio, os turistas deliciam-se com as imponentes fachadas de arte nova. A casa do Major Pessoa, convertida no Museu de Arte Nova, é uma das que mais atenções atrai. As paredes pintadas de azul-céu, os portões de ferro forjado embelezados com flores amarelas e os elementos que caracterizam a corrente não deixam ninguém indiferente.
Os moliceiros, que noutros tempos transportavam moliço, hoje cruzam-se carregados de turistas no canais da ria que atravessam a cidade. Cobram oito euros por cada passeio de 45 minutos. O mestre Manuel Silva, de 56 anos, diz que existem cerca de dez empresas a explorar o negócio, com um total de 24 barcos, que fazem, em média, oito viagens por dia cada. Há dez anos não eram mais de meia dúzia. "Há cada vez mais turistas em Aveiro. Antigamente não se via ninguém na cidade ao domingo." Mas, defende, se acabassem com os moliceiros, "o turismo ia abaixo".
A viagem de moliceiro começa rumo à "zona nova". Manuel refere-se ao braço da ria que se estende até à antiga fábrica de cerâmica Jerónimo Campos, edifício que atualmente acolhe a câmara municipal. Regressa depois às Pontes para ir até à "parte velha, dos armazéns do sal". É para esse lado que seguimos, rumo ao Mercado do Peixe, pois é também para essa zona que a multidão se dirige. Pelo caminho, as montras refletem os produtos típicos que mais se vendem: ovos-moles, sal, flor de sal e conservas.
Atravessamos a Praça do Peixe, que à noite é o centro da diversão noturna. Chegamos ao Mercado. As enguias ainda rabeiam na banca de Maria Joaquina Vaz. Mesmo depois de amanhadas, continuam a dar sinais de vida. "É que os restaurantes só as querem sem tripa", diz a peixeira, de 61 anos. São esses os grandes compradores. "O povo de Aveiro gosta muito, mas não compra porque não há money". Os turistas acham piada, mas só querem saber onde as podem comer já cozinhadas. Longe vão os tempos em que Joaquina vendia quase 100 quilos por dia. Hoje não passa dos 40.
Há mais de 25 anos que a mulher, natural da Murtosa, vende enguias. Quando vinha para Aveiro vender cebolas, os pescadores pediam-lhe que trouxesse o peixe. Percebeu que ali havia potencial de negócio. "Comecei a vendê-las porta a porta, mas os fiscais corriam-me", recorda. Instalou-se no Mercado do Peixe, quando ainda existiam mais de 40 bancas. Apenas oito resistem. E o mercado já não se faz só de peixe. Há bancas de artigos de pele, cavalinhos de pau, cópias de azulejos antigos, reproduções de moliceiros e casas da Costa Nova. António Simões, de 65 anos, é autor das miniaturas. Deixou a vida de marítimo e começou a "reproduzir tudo o que é típico de Aveiro". Estados Unidos, China e Japão são alguns dos países para onde envia as suas obras de arte.
Pouco depois das 11.00, o sol. Os turistas continuam a chegar. Espanhóis, franceses, brasileiros e outros cruzam-se com as gentes de Aveiro. Na rua do Cais dos Botirões, resistem algumas casas típicas, que convivem hoje com construções modernas. Entre aqueles que lamentam que não se tenha preservado o passado, há quem lute por mantê-lo vivo. A roupa no estendal à beira-ria é o sinal de que os cagaréus (designação dada às gentes ligadas ao mar e à ria e nascidas na freguesia da Vera Cruz) ainda habitam a sua cidade.
Ao meio-dia e meia, o cheiro a peixe assado toma conta da Praça. As esplanadas enchem-se. Do Rossio parte mais um comboio turístico. Vai com meia dúzia de turistas agarrados aos mapas. Também há tuk-tuks a passear pela zona. Mas não há dúvida que os moliceiros são os mais concorridos. Na viagem para o mais recente ex-líbris da cidade - um salinário, já conhecido como "spa salínico" - paramos no Tê Zero, uma marca na doçaria aveirense. Viciado em tripas-doces, Paulo Pinheiro, 50 anos, abriu o espaço há 17. Está prestes a mudar para uma outra loja , que mostra, em primeira mão, ao DN. Ali, respira-se Aveiro. No teto, o Farol da Barra. Nas paredes, as barricas de ovos-moles, as salinas e até uma imagem do falecido "senhor Augusto dos Pregos". Paulo diz que as tripas já começam a ser vistas como "um doce típico, comparado aos ovos- -moles". Ele tenta inovar, "embelezá-lo". Ovos moles e nutela estão entre as mais vendidas.
Depois de quase dez minutos a andar a pé, chegamos ao novo paraíso do sal em Aveiro. Afonso Miranda, gerente do espaço, propriedade da Cale do Oiro, explica que se trata de um "salinário" onde é possível tomar banhos de sal e de lama. Fala-nos das suas propriedades terapêuticas: "Ajudam no tratamento da psoríase e da celulite e melhoram a circulação sanguínea." Ao lado do Ecomuseu da Troncalhada, a empresa transformou duas salinas, criando uma espécie de piscina com elevada concentração de sal, que "produz a sensação de mar Morto". "Difícil é não boiar", diz José Limão, de 55 anos, que viajou de Oeiras só para conhecer o espaço. "É uma experiência diferente. Primeiro estranha-se, depois entranha-se", graceja. Luisina, argentina, pinta o corpo com lama. "Nunca tinha ido a um spa natural. É muito agradável". O acesso aos banhos custa dois euros, mas há outros serviços, como massagens de relaxamento no meio da marinha e um percurso pedestre.
Tradição que manda estender roupa na rua
Já lhe roubaram calças e toalhas. Muitas peças de roupa caíram à água. Mas Glória Naia nunca pensou deixar morrer a tradição. Todos os dias, a mulher, de 56 anos, estende a roupa à porta de casa, o número 14 da Rua do Cais dos Botirões. "A minha avó e a minha mãe já o faziam. É uma tradição. E os turistas gostam muito de ver." Mesmo sem sair da beira-mar, Glória pensa já ter corrido o mundo em fotografias: "Nem sei por onde ando." Vive numa "casa típica de marnoto", uma das poucas que mantém a arquitetura original: construção estreita, com uma porta no rés do chão e uma janela no primeiro andar. Era branca, mas a autarquia encarregou-se de a mandar pintar há meia dúzia de anos. Ficou amarela, com os rebordos das janelas e portas a vermelho. Embora as paredes tenham começado a ceder , Glória diz que ficaria "doente se saísse dali. "Há muita gente que me quer comprar a casa. Nem imaginam a quantidade de interessados. Mas vou aguentar até ao fim", assegura. Hoje em dia, já só a mulher e a vizinha do outro lado do canal estendem a roupa junto à ria. "E houve uma altura em que queriam acabar com isto, por vergonha ou algo assim." Os filhos, já adultos, visitam a mãe sempre que podem. "Gostam é disto."
Voltar a Aveiro? "Quero morar aqui"
Depois de um passeio de moliceiro, Karine e Franco Araújo e Karisia e Alex Inácio escolheram a bicicleta para conhecer melhor a cidade. Os dois casais de brasileiros irradiam boa disposição quando chegam à zona do Mercado do Peixe. "Aveiro é uma gracinha. Adorámos o estilo da cidade. É muito aquilo que se imagina", diz Karisia. Fizeram muitas pesquisas na internet, sabem ao que vêm. "Há muita informação em blogues. Decidimos andar o dia todo de bicicleta. É uma forma rápida de percorrer as ruelas." Ficaram "muito interessados" nos ovos-moles, mas ainda lhes falta conhecer as famosas tripas-doces. Chegaram de manhã cedo e vão embora ao final do dia. Com vontade de voltar? "De morar", frisa Marco. Querem saber quanto é o ordenado mínimo, o valor médio das rendas e o preço das consultas no veterinário. É que Karine e Franco são veterinários. Vivem no Espírito Santo, no Sudeste do Brasil, e estão a conhecer Portugal. Já passaram por Lisboa, Porto e Fátima. Seguem para explorar Óbidos. "Não é Óbitos", advertem, em tom de brincadeira.
Extrair sal com o turista a apreciar
A pele extremamente bronzeada, o boné na cabeça, os pés descalços sobre o sal e o galho na mão não enganam. Estamos diante de um marnoto. Manuel Gandarinho trabalha na safra do sal desde os 10 anos, altura em que ia para as salinas só para fazer companhia ao avô, mas acabava sempre com a rasoila e a canastra na mão. Era um menino frágil - "na idade e na estatura" - que, a partir dos 14, já fazia a safra inteira na Grã Caravela. É precisamente aí que o encontramos. Depois de ter passado pela construção e pela piscicultura, "mas sem nunca abandonar o salgado", integrou há um ano e meio um projeto da empresa Cale do Oiro, na salina que o viu passar de moço a marnoto. Hoje faz aquilo que sempre fez - produção artesanal de sal - enquanto ao seu lado os turistas e locais tomam banhos com elevada concentração de sal. "Nunca imaginei uma coisa destas. No início foi estranho, mas sempre acreditei no projeto", diz ao DN, admitindo que nunca pensou que aquele spa atraísse tanta gente. A safra começa às 06.00 e, muitas vezes, só acaba às 20.00, com uma pausa para almoço. Isto porque a flor de sal, produto gourmet cada vez mais procurado, só pode ser apanhada ao final da tarde. "Deixamos de ter vida."