O combate à pandemia de covid-19 travou os cuidados nalgumas áreas do Serviço Nacional da Saúde (SNS), nomeadamente na cirúrgica, mas logo no primeiro ano, em 2020, o governo aprovou uma portaria para contemplar a produção adicional, fora do horário de trabalho, com vista à recuperação das listas de espera. A mesma portaria foi revista em janeiro de 2023 e mantida até 30 de junho, mas o que acontecerá a partir daqui, o Ministério da Saúde ainda não anunciou..O certo é que este regime permitiu que, em 2022, se alcançasse "o maior número de sempre de intervenções no SNS", 758 mil, e que, nos primeiros quatro meses de 2023, se tivesse batido também um recorde: 246 541, comparativamente com o mesmo período dos últimos quatro anos..Os dados são da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que considera tratar-se de "um número histórico de doentes operados, o maior de sempre quando comparamos os registos dos períodos homólogos dos anos anteriores", justifica, em resposta escrita. Quanto ao número real de doentes em lista de espera, esse, não sabemos..O DN solicitou-o à ACSS , porque o número real integra os novos doentes inscritos e os que estão em acumulado, mas este organismo apenas disponibilizou o número de doentes inscritos em cada ano e que constam das LIC (Listas de Inscritos para Cirurgia), referindo, contudo, que dos inscritos em 2022 (218 189), 69,1% foram atendidos dentro do Tempo Máximo Garantido em Resposta (TMGR) e, em 2023, que já vai com 241 482 inscritos, esta percentagem é de 72%..O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) confirma ao DN que a percentagem de doentes operados fora do tempo adequado (180 dias) ronda, de facto, os 30% e os 20% para os doentes que aguardam uma primeira consulta, mas sublinha que, "enquanto tivermos estes números, temos de ficar preocupados e manter o esforço e os incentivos para que o aumento na produção continue a acontecer"..DestaquedestaqueDos 218 mil doentes inscritos para cirurgias em 2022, 69,1% foram atendidos no tempo adequado. Dos 241 mil já inscritos em 2023, foram atentidos neste tempo 72%, mas o presidente da APAH diz que o número dos doentes a ficar de fora ainda nos deve preocupar..Para Xavier Barreto, o facto de se estar agora a bater recordes e a conseguir recuperar a atividade protelada durante a pandemia deve-se, "em larga medida, ao recurso da produção adicional, que é crescente em grande parte dos hospitais"..E alerta: "Tem-se dito que esta portaria pode terminar mesmo a 30 de junho; sabemos que, eventualmente, o foco da tutela será incentivar cada vez mais os hospitais e os serviços à criação de Centros de Responsabilidade Integrada (CRI), onde o pagamento adicional continuará a ser pago, mas receamos que, com a escassez de recursos humanos, as listas de espera aumentem e o tempo de espera também"..Até porque, sustenta, "ainda estamos a sofrer com o excesso de procura, como efeito do encerramento de serviços durante a pandemia. Não sei se tal se vai manter por muito mais tempo, mas a verdade é que, neste momento, temos muito mais procura do que capacidade para produzir. E este diferencial traduz-se num aumento das listas de espera"..Chegados a 30 de junho, o Ministério da Saúde pode sempre dizer que mantém a portaria que regula a produção adicional ou pode dizer que os hospitais têm de criar mais CRI - serviços e equipas que acabam por funcionar num modelo de gestão diferente do resto do hospital, que já recebem de acordo com a produtividade, tendo mais autonomia na organização. Porém, para o representante de quem gere os hospitais "é urgente que se reflita também [sobre] como organizar e melhorar os cuidados tendo em conta os recursos existentes"..Mas não só. A curto prazo, sublinha, "é preciso arranjar soluções para dar mais condições de trabalho e salariais aos profissionais, condições que os fixem no SNS". Xavier Barreto argumenta que a realidade das listas de espera "não é um fenómeno exclusivo do nosso país, outros sistemas de saúde de países civilizados também o têm", mas "estes estão a arranjar formas de o controlar e, para que o SNS possa garantir respostas no tempo adequado aos utentes, é urgente refletir-se esta realidade"..Neste momento, e ao abrigo da portaria que foi atualizada a 6 de janeiro de 2023, as equipas de cirurgia estão a ser pagas por produção adicional (por cirurgia fora do seu horário normal) entre 45% a 55% do valor total de cada uma, embora este limite possa ir até aos 70% no caso dos CRI". Ou seja, "se estamos a falar de uma cirurgia que tenha um custo total no SNS de cinco mil euros, entre 45% a 55% deste valor é pago à equipa, sendo que esta inclui o cirurgião principal, o assistente, o anestesista, enfermagem e assistentes operacionais"..Questionado pelo DN se este pagamento adicional não faz descer a atividade programada normal, o representante dos administradores hospitalares explica que "houve sempre o compromisso dos hospitais de não reduzir a produção-base". Se tal está a acontecer ou não, também não se sabe, porque o número de produção-base por hospital, e até por especialidade, também não está disponível no SNS..Destaquedestaque"A questão sobre as listas de espera, apesar dos recordes, é que ainda há doentes a não serem atendidos no tempo adequado e, com "a escassez de profissionais no SNS, concretamente de médicos, receamos que, no futuro, o problema se agrave ainda mais." .O DN sabe que há hospitais que estão a produzir mais 8% a 10% do que aquilo que está definido em contrato-programa, mas que tal não é assim em todas as unidades do SNS. Por isso mesmo, o presidente da APAH reforça "a urgência de se refletir e discutir formas que permitam uniformizar práticas em todas as unidades do SNS"..De acordo com a ACSS, e olhando para os números disponibilizados ao DN desde 2019, "o contexto da pandemia explica a redução do número de utentes inscritos em LIC em 2020 e no início de 2021", uma fase que este organismo considera que começa a ser ultrapassada em 2021, logo após "a fase mais aguda da pandemia", em que se registou "uma recuperação da atividade", tendo-se esta "tendência mantido em 2022 e já este ano"..Quanto às especialidades que continuam a registar maior número de utentes em espera para cirurgias também não há novidades: Oftalmologia, Ortopedia, Cirurgia Geral, Otorrinolaringologia e Urologia. O administrador hospitalar justifica a situação com o facto de serem "as que mais doentes recebem. É só por isto. A Oftalmologia é o serviço que dá mais consultas no SNS e, a seguir, vêm todos os outros serviços referidos"..A questão sobre as listas de espera, apesar dos recordes, diz Xavier Barreto, é que ainda há doentes a não serem atendidos no tempo adequado e, com "a escassez de profissionais no SNS, concretamente de médicos, receamos que, no futuro, o problema se agrave ainda mais". Por isso, reforça que "o ponto fundamental é tornar o SNS mais atrativo para reter os profissionais e isso tem a ver, naturalmente, com as condições de trabalho e salariais, pagar pelo desempenho, mas também com a qualidade", o que obriga também "a repensar o nosso sistema de saúde e as competências de cada classe profissional"..O presidente da APAH exemplifica: "Há cada vez mais países que estão a responsabilizar outros grupos de profissionais pelo acompanhamento de doentes crónicos, pelo atendimento de doença aguda não-grave e não-urgente, aliviando assim os hospitais e até os médicos desse tempo dedicado a doentes estáveis. De cada vez que temos um médico ocupado a ver um doente crónico estável, sem necessidade de alteração de terapêutica, não está a dar uma primeira consulta e isto tem de nos levar à reflexão se faz sentido ter um médico no acompanhamento destes doentes crónicos estáveis, sabendo que temos listas de espera.".Portanto, a questão das listas de espera é um problema que tem de ser trabalhado a várias dimensões, das condições de trabalho e salariais à organização dos cuidados. "É uma discussão que temos de ter com alguma urgência", reforça o presidente dos administradores hospitalares.