Francisco. O Papa que veio quase do fim do mundo
Alberto PIZZOLI / AFP

Francisco. O Papa que veio quase do fim do mundo

Eleito há 11 anos, Jorge Maria Bergoglio tem vindo a alterar alguns dos hábitos da Igreja Católica, o que lhe garantiu críticas internas e elogios de vários setores da sociedade. Para terça-feira está previsto o lançamento da sua autobiografia.
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Na noite de 13 de Março de 2013, pouco depois de a chaminé da Capela Sistina ter soltado o esperado fumo branco (sinal de que o Conclave chegara a uma conclusão e elegera novo Papa), Jorge Maria Bergoglio apresentou-se aos fiéis como alguém que vinha “quase do fim do mundo”. Com essa afirmação, na aparência descontraída, mas nada inconsequente, o até aí Cardeal de Buenos Aires sublinhava o facto de, pela primeira vez na sua História, a Igreja Católica ser liderada por um não-europeu. Neste caso, um compatriota de Astor Piazzolla e Diego Armando Maradona.

Para o Padre Anselmo Borges, o que se seguiu, nessa mesma noite, anunciou ao que vinha este primeiro sul-americano a sentar-se na Cadeira de São Pedro, que foi também o primeiro pontífice a escolher o nome de Francisco: “A sua grande popularidade advém do facto de ser um verdadeiro cristão, por palavras e obras. Recordo que logo na noite em que foi eleito, veio à janela e saudou a multidão e pediu a todos que rezassem por ele antes de lhes dar a bênção. Isto é de uma simplicidade desarmante. Ele interessa-se mesmo por todos, a começar pelos mais pobres e marginalizados, como Jesus fazia.”

A esta conceção do cristianismo corresponde um reforço daquilo que se considera ser uma vivência sinodal da Fé, que, ainda para o Padre Anselmo Borges, “será a grande herança que este Papa nos vai deixar. Recentemente, ele disse que o Papado ainda é a única monarquia absoluta da Europa e que, lá dentro, ainda há práticas mais próprias de uma Corte do que de uma Igreja. O que ele quer é uma fé participativa, que seja realmente a comunidade dos que acreditam em Jesus e querem seguir o seu exemplo.”

Este ponto de vista é partilhado por João Manuel Duque, pró-reitor da Universidade Católica e catedrático de Teologia: “O facto de termos um Papa que veio de fora da Europa faz, com certeza, muita diferença. Há horizontes e modos de ver as coisas, mesmo teológicos, marcados por essa origem, que entram um pouco em colisão com uma Igreja que, em alguns aspetos, vinha a ser muito eurocêntrica. Eu diria que, com Francisco, há um conjunto de temas que não são de agora, mas que ganharam uma nova relevância, quer por opção sua, quer por circunstâncias que fazem que tenha chegado o momento desses temas serem tratados. É o caso dos sínodos, que adquiriu uma grande relevância neste pontificado.”

Por sínodo (da palavra grega sýnodos, que quer dizer “caminhar juntos”) entende-se uma assembleia de religiosos e leigos, convocada pela autoridade eclesiástica. O de 2023 teve como grande novidade a participação ativa de leigas do sexo feminino. O que não é coisa pouca para Anselmo Borges: “Só assim caminharemos para uma Igreja verdadeiramente sinodal, e não vertical, em que todos participam. No sínodo houve leigos de ambos os sexos. Não pode haver discriminação porque temos de estar conscientes de que Jesus teve discípulos e discípulas.”

O caminho para esta desejada sinoladidade prossegue em 2024, com a realização de um novo encontro marcado para Outubro, sob o tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”.

A reforma das estruturas eclesiásticas, de modo a mostrarem-se mais missionárias, vinha, aliás, a ser anunciada pelo Papa desde os primeiros tempos do seu pontificado. Foi o que aconteceu, poucos meses após a sua eleição, com a publicação da Exortação Apostólica Evangelii gaudium, considerada por muitos um verdadeiro texto programático. No documento, Francisco exorta a uma “nova evangelização”, caracterizada pela alegria, mas também a uma intervenção mais ativa da Igreja junto das comunidades.
O antigo cardeal de Buenos Aires sabia os riscos que corria ao escolher para si mesmo um nome tão emblemático para a História da Igreja como o de Francisco, inspirado em São Francisco de Assis, cuja conduta de austeridade e compaixão o levou a fundar a Ordem mendicante que tem o seu nome. Um nome que, segundo o próprio Papa, foi escolhido em pleno Conclave, como mais tarde diria aos jornalistas: “Na eleição, eu tinha ao meu lado o arcebispo emérito de São Paulo, um grande amigo [o brasileiro D. Cláudio Hummes]. Quando a coisa começou a ficar um pouco perigosa, ele começou a tranquilizar-me. E quando os votos chegaram a dois terços, aconteceu o aplauso esperado, pois, afinal, havia sido eleito o Papa. Ele abraçou-me e disse: ‘Não se esqueça dos pobres.’ Aquilo entrou na minha cabeça. Lembrei-me imediatamente de São Francisco de Assis.”

A sua primeira viagem como pontífice fez jus a esta escolha: aconteceu em julho de 2013 e o destino foi a ilha italiana de Lampedusa, porto de desembarque na Europa de milhares de imigrantes clandestinos. Nesse cenário de horror, Francisco procurou chamar a atenção da comunidade internacional para o drama da imigração. Um tema a que voltaria em abril de 2016, com uma visita ao campo de refugiados em Lesbos, na Grécia. No voo de regresso a Roma, levou consigo 12 refugiados sírios, para que recebessem assistência na capital italiana.

Anselmo Borges recorda, a este propósito, a coragem com que Francisco denunciou a crueldade a que pode chegar o capitalismo neoliberal: “Não hesitou em dizer que é uma economia que mata. O que o Papa defende é uma economia social e ecológica de mercado.” E lembra a importância da Encíclica Laudato Si (Louvado Sejas): “É um texto que fica para a História. Nele, diz-se que é preciso cuidar da casa comum e que quando agredimos a Natureza também estamos a agredir os mais pobres.”

A este documento, juntar-se-ia, ainda sobre o tema da sustentabilidade ambiental, a quinta Exortação Apostólica intitulada Querida Amazónia, que reúne os frutos do Sínodo Especial para a Região Pan-Amazónica, realizado no Vaticano, em 2019.

A importância dos documentos já produzidos durante este 11 anos de pontificado é um dos aspetos realçados por João M. Duque. “Mais do que momentos”, diz-nos o pró-reitor da Universidade Católica, “prefiro destacar documentos, que são da maior importância, quer para a Igreja, quer para a comunidade, como as encíclicas. Com a Laudato Si, por exemplo, temos o primeiro grande documento sobre ecologia e ambiente produzido por um líder mundial.”

Para a História deste pontificado ficará, decerto, a mudança no discurso da Igreja sobre os católicos LGBTQ+ e, para isso, bastaram duas afirmações históricas do Papa: “Quem sou eu para julgar?” E “Ser homossexual não é crime.” Mas há mais do que retórica: Francisco não casa pessoas do mesmo sexo, mas abençoa-as e já aconselhou pessoalmente casais homossexuais que procuram criar os seus filhos como católicos. Em 2015, durante uma visita aos Estados Unidos, Francisco recebeu em audiência um ativista anticasamento entre pessoas do mesmo sexo, mas também um jovem católico e o seu namorado.

Anselmo Borges destaca a importância deste legado: “Embora não seja a favor do casamento homossexual, o Papa não nega bênçãos e já afirmou mesmo que o amor deve ser vivido em pleno, seja por quem for. Este discurso é, aliás, extensivo aos divorciados que decidem casar pela segunda vez e que se viam rejeitados, muitas vezes pela sua própria fé.”

Nesta visão integradora do mundo e da religião, Anselmo Borges destaca ainda a insistência de Francisco no diálogo com outras igrejas cristãs (reconhecendo, por exemplo, o papel histórico de Martinho Lutero, o homem que desencadeou a Reforma protestante no século XVI) mas também com outras religiões, nomeadamente o Islão.

Momentos mais duros e controversos são os que se relacionam com o combate à corrupção no interior da Igreja, mas, sobretudo, com a questão dos abusos sexuais cometidos por clérigos, nomeadamente os que envolveram crianças e jovens. De acordo com declarações públicas do próprio Papa sobre o assunto, teria sido durante uma visita ao Chile, no quinto ano do pontificado, que o problema se revelou em toda a sua horrível extensão. Durante essa viagem, Francisco compreendeu que existia um abismo entre o que os bispos chilenos lhe diziam sobre um caso que se tornara muito conhecido e a realidade dos factos: ao longo de décadas, milhares de fiéis tinham sido molestados por padres católicos naquele país sul-americano. “Essa foi a minha conversão”, disse mais tarde. “Foi quando a bomba explodiu, quando vi a corrupção de muitos bispos envolvidos.”

Terá sido por causa dessa tomada de consciência que, em 2019, se realizou, no Vaticano, um Encontro de Cúpula sobre a tutela dos menores, do qual nasceu o documento Vos estis lux mundi (“Vós sois a luz do mundo”), que obrigava os clérigos e religiosos a denunciar os abusos que chegassem ao seu conhecimento. No seu preâmbulo pode ler-se: “Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e ferem a comunidade de fiéis. Para que estes fenómenos, em todas as suas formas, não se repitam, é necessária uma profunda e contínua conversão dos corações, atestada por ações concretas que envolvam todos na Igreja. Assim, importa que os procedimentos sejam adotados universalmente para prevenir e combater estes crimes que traem a confiança dos fiéis.”

Para a História deste pontificado fica também a capacidade de comunicação de Francisco, mas também o crescente volume de informação de que dispomos. Como lembra João Duque: “Hoje temos mais acesso ao que é a atividade do Pontífice. Isso não acontecia, por exemplo, no tempo de João XXIII, que foi muito importante para a História da Igreja do século XX. Podemos dizer que a partir de João Paulo II, a pessoa do Pontífice ganhou muito mais impacto comunicacional. João Paulo II já era uma figura de líder, Bento XVI era mais reservado e o Papa Francisco tem um estilo mais descontraído, o que o torna, por vezes, controverso, mas também muito atrativo, até fora da Igreja.”

Personalidades à parte, “hoje sabemos que as posições doutrinais de João Paulo II não são idênticas às de Francisco, mas há uma nova aceitação de que a Igreja não é monolítica e que, nela, há toda uma diversidade de posições. Temos de aprender a conviver com isso.”

Nas próximas semanas, o Papa promete voltar a testar esse “poder de encaixe” de alguns setores da sua Igreja, com a anunciada publicação da sua autobiografia, anunciada para esta terça-feira em cerca de 40 países. O livro, intitulado Vida: A minha história na História (escrita pelo correspondente da Mediaset no Vaticano, Fabio Marchese Ragona) promete trazer algumas revelações sobre os bastidores do Vaticano, como o facto de algumas pessoas, não-identificadas no livro, terem estado a preparar a realização de novo conclave enquanto Francisco esteve hospitalizado.

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