Cocaína: a 'avalancha branca' que está a cobrir a Europa

Cocaína: a 'avalancha branca' que está a cobrir a Europa

investigação: Os longos tentáculos das redes de traficantes  de cocaína - agora nas mãos de uma aliança entre os sindicatos criminosos do Brasil e das máfias dos Balcãs - rodeiam os portos europeus e já chegaram aos nacionais. Portugal é uma das principais portas de entrada da cocaína que está a inundar a Europa.
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Há um chavão da geopolítica que se aplica como uma luva a Portugal: a posição geográfica do território de um Estado determina o seu papel internacional. O nosso país aqui está para o provar. É o único dos países europeus que é apenas atlântico e é o mais próximo das Américas - sortilégio que faz dele, segundo o último relatório da Agência das Nações Unidas para as Drogas e o Crime (UNODC, na sigla em inglês), uma das mais largas portas de entrada de cocaína por via marítima na Europa.

Mas não é só por causa da geografia que Portugal é um ponto de passagem. Os peritos das Nações Unidas garantem que parte “muito significativa” da cocaína é traficada através dos portos. Uma droga é expedida da América do Sul escondida nos contentores entre mercadorias inocentes. Escasseiam em Portugal, para desespero da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, da Polícia Judiciária, os pórticos de raio-X capazes de detetarem a droga acomodada nas entradas dos contentores - o que faz de Portugal um oásis refrescante para as redes de tráfico cada vez mais organizado e a cada dia com mais meios.

Os portos portugueses, de acordo com a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, movimentaram três milhões de conteúdos em 2022 – e dois milhões, segundo os últimos números conhecidos, nos primeiros oito meses do ano passado. O maior porto da Europa, o de Roterdão, lida com uma média de 15 milhões por ano, e o segundo maior, o de Antuérpia, com 10 milhões.

Holandeses e belgas acabam de anunciar um investimento conjunto de 71 milhões de euros no reforço da segurança dos terminais de contentores com a aquisição de mais scanners e contratação de pessoal. Por cá, as administrações portuárias marcam passo a ver navios. O caso de Lisboa é exemplar. Funcionavam dois scanners. Um avariou-se, há mais de um ano, e não valerá a pena mandar reparar. O concurso público para aquisição de um novo equipamento, segundo fonte da Administração do Porto de Lisboa, pede para não ser identificado, “ainda não foi lançado”.

Os alertas soam por todo o lado. Um relatório da Comissão Europeia, divulgado há dois meses, estima que o tráfico de cocaína não tem parado de aumentar: é de tal maneira elevado que a Europa, suplantando os Estados Unidos, é hoje o maior mercado de consumo. Em 2021, de acordo com o mesmo documento, as polícias europeias apreenderam 303 toneladas de cocaína. Só no Porto de Antuérpia foram capturados 91 mil quilos. No ano seguinte, o porto belga bateu o recorde com apreensão de 110 toneladas.

“A grande ameaça é não haver tráfego marítimo comercial”, diz ao DN um operacional da Judiciária que, por razões de serviço, não pode ser identificado. Os longos tentáculos das redes de traficantes também já rodaram os portos portugueses. Os números oficiais da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes demonstram como esse abraço dos senhores do crime é cada vez mais poderoso. Em 2021, foram apreendidas em Portugal 9,9 toneladas de cocaína, mais de metade em contentores. No ano seguinte, as apreensões subiram para 16,5 toneladas - das quais cerca de 14 toneladas escondidas entre carga marítima.

A Comissão Europeia, decidiu a travar esta avalancha branca , prepara-se para pedir ao Parlamento e ao Conselho que aprovem um conjunto de 17 medidas - entre elas, a criação de uma Aliança Europeia de Portos para “reforço” do trabalho das autoridades aduaneiras; a ampla utilização em escala de equipamentos projetados que permitem evitar uma droga planejada entre o pacote de conteúdo; e acordos de cooperação e partilha de informação policial entre os países de embarque e os de destino.

Mas as redes de tráfego já vão uns passos adiantados. Adotaram, há anos a esta parte, um novo esquema de importação de drogas. Parte significativa chega à Europa sob a forma de pasta de coca que é depois transformada, em laboratórios clandestinos, em cocaína pronta para consumo. A pasta obtida a partir das folhas de coca tem uma densidade muito próxima da fruta - de tal maneira idêntica que, vista ao raio-X direcionado ao interior dos contentores, pode confundir-se com o resto da carga de banana ou ananás.

As polícias europeias já tinham tomado de assalto alguns pequenos laboratórios, nos Países Baixos, na Bélgica, em Espanha. Nenhuma de grandes dimensões - mais cozinhas que outra coisa. Até que a Polícia Nacional Espanhola, em abril do ano passado, desmantelou um grande laboratório, nos arredores da cidade galega de Pontevedra, a menos de uma hora da fronteira.

A operação, em conjunto com a Polícia Judiciária, foi considerada pelas autoridades como um “marco” na guerra à cocaína. O laboratório, em que trabalhavam colombianos, mexicanos e espanhóis, funcionava durante 24 horas por dia e tinha capacidade para produzir 200 quilos de cocaína prontos para consumir. Foram apreendidos 1300 quilos de massa de coca que, soube-se depois, fizeram parte de um lote de 1,6 toneladas desembarcadas no Porto de Leixões.

A droga, desta vez, não veio acomodada em contentores de fruta - mas dissimulada numa gigantesca máquina de triturar pedra importada da Colômbia por uma empresa registada em Portugal e propriedade de um galego. O desmantelamento do laboratório de Pontevedra permitiu à Polícia Nacional lançar a Operação Mourente , que levou à apreensão, aos 18 detidos, de um património específico - automóveis, propriedades imobiliárias e aplicações financeiras - no valor de quase dois milhões de euros.

Meses depois, em novembro, a Polícia Judiciária, através da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, fez desabar um laboratório para transformação de pasta de coca, numa zona erma de uma freguesia dos arredores de Guimarães. Também Portugal não escapou à nova tendência das redes de traficantes com ligações à América do Sul - a importação de pasta de coca para ser transformada em cocaína pura. A fábrica era mais pequena que a de Pontevedra. Ainda assim, tinha capacidade para processar diariamente a mente pelo menos 100 quilos de droga.

Dias depois, a Polícia Judiciária lançou a Operação Âncora - e apreendeu 4,6 toneladas de massa de coca escondidas em caixas de bananas num armazém em Lisboa. A droga e a carga eram provenientes do Equador e chegavam por via marítima. Segundo foi divulgado pela PJ, a pasta de coca tinha como destino final os Países Baixos e a Bélgica.

Da heroína à cocaína
A Polícia Judiciária captura hoje mais cocaína do que heroína. Até final da década de 90 do século passado, era ao contrário. As apreensões de cocaína eram raras - tanto em Portugal como por essa Europa fora. A PJ, de resto, ficaria na história do combate ao tráfico. Pela primeira vez, foi realizada uma ação em alto-mar - a Operação Nau Catrineta , coordenada por Dias Costa, um histórico da Judiciária -, que resultou na apreensão de tonelada e meia de cocaína. Foi, então, a maior captura deste tipo de droga até aí conseguida em território europeu.

O negócio do tráfico mudou. A heroína foi substituída pela cocaína - que hoje submerge o nível europeu como uma verdadeira avalancha branca . A heroína provinha principalmente do Triângulo Dourado , a vasta região na confluência dos rios Ruak e Mekong, que é um quatro países do Sudeste Asiático: Myanmar, Vietname e Tailândia. Chegava ao Mediterrâneo através da rota dos Balcãs com uma paragem na Turquia - território do grande patrão do tráfico, o turco Urfi Cetinkaya, conhecido como O Paralítico . O narcotraficante era mesmo tetraplégico, resultado de uma troca de tiros com a polícia, e movia-se numa cadeira de rodas. Cetinkaya distribuiu boa parte da sua heroína a dois portugueses instalados no sul de Espanha - Franklim Pereira Lobo, e José Gomes Pereira Coelho, O Anão , que se encarregaram de abastecer o mercado europeu.

Os campos de papoilas do Triângulo Dourado sofreram uma derrota da concorrência do Afeganistão - que havia de se transformar no maior produtor mundial de heroína. A droga, ainda assim, continua a chegar em abundância ao Paralítico, a Franklim Lobo e a Pires Coelho. As razões chegaram a mudar nos finais dos anos 90. Os grupos paramilitares da guerra civil na antiga Jugoslávia organizaram-se em grupos mafiosos - e obtiveram, eles próprios, a controlar a rota e o negócio da heroína com origem no Afeganistão. O todo-poderoso turco Urfi Cetinkaya perdeu sua importância. Franklim Lobo e Pires Coelho apagaram-se como os senhores do tráfico: de reis passaram progressivamente a príncipes, a duques, a condes - e, por fim, à cadeia.

Do outro lado do Atlântico, a tradição também já deixa de ser o que era. Os velhos cartéis da América Latina, que exportavam a cocaína principalmente para os Estados Unidos, desmoronaram-se e das ruínas renasceram um sem número de grupos com os olhos postos num novo mercado - a Europa, onde a cocaína rareava.

Entram em cena os brasileiros do Primeiro Comando da Capital (PCC). Os homens do PCC, com estreitas ligações aos cartéis da América Latina, juntam-se à máfia dos Balcãs num pacto que hoje dominam o tráfico de cocaína e, segundo a Comissão Europeia, “constitui uma ameaça cada vez maior à segurança internacional europeia”.

O submarino

Já se sabia que os carrinhos da América do Sul utilizavam submersíveis artesanais para o tráfico de drogas em rotas mais ou menos curtas de cabotagem. Mas não se imaginava que se aventurariam a atravessar o Atlântico. Até ao dia 24 de novembro de 2019 – quando as autoridades espanholas surpreenderam o frágil submarino, com três mil quilos de cocaína avaliados em 100 milhões de euros, numa praia de Cangas, na Galiza.

O submarino carregou com três toneladas de cocaína apanhado pelas autoridades espanholas na Região de Vigo escapou, ao largo da costa portuguesa, a uma lancha voadora da Unidade de Controlo Costeiro da GNR.

O alerta sobre a rota do submarino, que zarpara da Amazónia com destino a Portugal ou a Espanha, chegou ao Centro de Análise e de Operações contra o Narcotráfico Marítimo, a agência europeia com sede em Lisboa. A lancha da GNR que se fez ao mar para intercetar o alvo parou com uma avaria - e o submarino pesado viagem para a Galiza.

Não se esse caso de embarque para o serviço de tráfico de drogas, a travessia do Atlântico teria qualquer coisa de heróico. E o grande herói desta aventura que ganha para a história do narcotráfico seria o piloto - Augustin Alvarez, um ex-boxer galego com prémios arrecadados, que arrumou as luvas e pôs as mãos ao serviço dos carrinhos. A bordo seguimos, ainda, dois primos equatorianos: Pedro Roberto Manzaba e Luis Tomas Manzaba.

A autêntica epopeia destes três homens está contada em livro - Operación Marea Megra , do jornalista galego Javier Romero - e desenvolveu uma minissérie de televisão de quatro episódios, uma produção espanhola e portuguesa, em que ambos Nuno Lopes e Lúcia Moniz.

A valentia dos três traficantes - principalmente, a destreza do piloto Augustin Alvarez - impressionou e comoveu o capitão da Guarda Civil Francisco Torres. Zarparam da Amazônia em 28 de outubro de 2019, uma segunda-feira, e fez-se ao traiçoeiro Atlântico com destino a Espanha - onde chegou no final da manhã de 24 de novembro, domingo. Durante os 24 dias de viagem, enfrentamos três temporais e, por uma questão de metrô, não foram abalroados por um navio porta-contentores.

O pequeno submersível de 22 metros, construído clandestinamente na Guiana, era acanhado para três homens, não tinha ventilação, nem beliches, nem casa de banho - nada! - apenas um cheiro insuportável. Largaram com um pequeno tanque de água potável e escassa comida. Dormiam à vez sobre os fardos de cocaína. Passaram fome e sede. Sentiram medo. Os gases do motor entonteciam-nos. Tiveram febre durante praticamente toda a viagem e combateram-na com ibuprofeno.

Navegavam com a ajuda de um GPS pouco fiável que, de vez em quando, deixava de trabalhar - contrariedade que os obrigava a rotas erráticas até voltarem a ter rede. Sofreram avarias mecânicas que lá foram conseguindo resolver.

A viagem poderia ter terminado ao longo da costa portuguesa. Mas a lancha voadora da GNR, mandada sair para interceptar os traficantes, sofreu uma arreliadora avaria. As autoridades espanholas, alertadas, esperaram por eles por toda a costa entre as rias de Vigo e o Cabo de Finisterra. Apanharam-nos em Gangas.

Telefonemas fatais

O capitão João Caetano teria mais possibilidades de passar desesperado por entre o abundante tráfego no Estreito de Gibraltar - tão intenso como o trânsito da Segunda Circular em hora de ponta - se não telefonasse à mulher enquanto cruzava as éguas com toneladas de haxixe a bordo. O celular foi a sua perdição. Tanto telefonema fez, que seu barco foi localizado. Caiu na ratoeira montada à entrada do Mar Mediterrâneo pela corveta portuguesa António Enes -, de onde, a coberta da noite e apesar das ondas irrequietas, largaram em lanchas rápidas duas equipes do Destacamento de Ações Especiais de Fuzileiros para uma operação arrojada de abordagem.

A batalha naval - coordenada pela Polícia Judiciária e batizada com o nome de código da Operação Levante - foi um sucesso realizado a bordo da corveta. A embarcação Jaan , com pavilhão holandês, habilmente pilotada, foi finalmente apanhada com 10 toneladas de haxixe repartidas por 336 fardos. Foi a maior apreensão de sempre de uma só vez. O capitão Caetano, de 51 anos, conseguiu noutras graças iludir em alto-mar as autoridades italianas, gregas e maltesas. A fortuna abandonou-o na madrugada de 16 de maio de 2017. Desafiou o destino - e perdeu! A aventura, de resto, tinha tudo para correr mal.

Um velho lobo do mar, supersticioso e crendeiro, não teria embarcado nesta viagem rumo ao Cabo Espartel, na costa atlântica de Marrocos, para carregar 10 toneladas de haxixe. Mas o capitão João Caetano acreditava mais na sua estrela da sorte do que nos presságios. Cismou em largar do Porto de Viana do Castelo em 12 de maio. Era uma sexta-feira. Dia aziago que os marinheiros enjeitam para início de viagens longas e perigosas.

Ao longo da viagem para sul, rumo a Marrocos, João Caetano não parou de telefonar para mulher. Ambos os telemóveis, o dele e o dela, estavam sob escuta. Enquanto conversavam, ao longo da costa, o capitão ia acionando antenas em terra que, no posto de escuta na sede da Polícia Judiciária, permitiu-me a localização do navio. Depois de passar o Cabo de São Vicente o capitão informou a mulher de que no dia seguinte iria carregar a mercadoria algures em Marrocos - já a fragata António Enes navegava em águas internacionais ao largo da costa marroquina e um avião de vigilância P3 Orion varria, do ar, a superfície marítima com as potentes câmaras de visão noturna.

Na noite de 15 de maio, João Caetano volta a ligar para mulher. Está eufórico. Diz que tudo está a correr bem. Os inspetores da PJ ouviram tudo com imensa alegria. Ficaram com a certeza de que o capitão tinha carregado o haxixe e se dirigia para o Mediterrâneo. A corveta ruma a toda a força com destino ao Estreito de Gibraltar -e aguarda que o barco da droga navegue ao seu encontro para a emboscada fatal.

O avião da Força Aérea, já no dia 16, consegue detectar duas localizações da embarcação. João Caetano vai direto à armadilha. Ao cair da noite, apesar do estado do mar, duas equipes dos Fuzileiros em lanchas rápidas fazem a abordagem. O capitão e os seus seis tripulantes não reagiram. Tinha a bordo 10 toneladas de haxixe, uma das maiores apreensões de sempre. Uma droga seria desembarcada na zona de Toukut, na Síria. Não chegou lá.

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