Em abril de 1974 tinha 27 anos e estava na Guiné. Comando, fora destacado para a mais mortífera das frentes de batalha da Guerra Colonial. De Moçambique e Angola levara experiência que o impelira, em terras do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) a ser um dos fundadores do Movimento dos Capitães, a cuja comissão coordenadora pertencia. Sabia então que a ação estaria para breve. Estava por isso em ligação com os camaradas de Lisboa, capital do império. Um império que não queria defender, uma ideia que detestava, desterrado em terras a que “não pertencia”, escreveria mais tarde. Ele, a quem sua mãe, de origem açoriana, ensinara que se é do sítio onde se nasce. Cinquenta anos depois, no mês da revolução, acompanhado por canções de abril que uma enfermeira lhe leva à cama de um hospital de Lisboa, Carlos Matos Gomes morre de pneumonia. Admirador de Otelo, roubou ao amigo o célebre vocativo, dirigindo-se ao cancro que há dois anos o atacava por “pá”. Quem o seguia nas redes, sabe que olhava de frente, discutia de frente, numa argumentação por vezes radical, fora do cânone, causadora de indignação e turbulência. Apreciador desse confronto duro, por vezes rude, raramente respondia aos insultos que lhe dedicavam. Nascido em Vila Nova da Barquinha em 1946, Carlos Matos Gomes, ribatejano, faria 79 anos a 24 de julho, o dia que marca a vitória dos liberais sobre os absolutistas, corria 1833. Absolutistas, espécie que detestava. “Quero preservar a minha diferença e a minha liberdade. Quero preservar as minhas capacidades, o meu direito à dúvida e o meu direito a correr os meus riscos e a ser responsável por eles”, disse há um ano, em entrevista ao DN.Carlos Matos Gomes: "Nunca vivemos numa democracia como a que existiu do 25 de Abril ao 25 de Novembro".Cresceu na divergência, primogénito de três: ele e duas raparigas. A mãe, católica progressista, o pai, beirão de Vila de Rei, crente fervoroso e conservador, militar com simpatias pelo Estado Novo, nunca esconderam o orgulho no filho agnóstico e “muito voltado à esquerda”. “Orgulho imenso que eles tinham no filho, na nossa família a divergência e as diferenças foram sempre muito bem-vindas”, diz ao DN o sobrinho Tiago Matos Gomes. “O meu tio tinha ideias muito fortes como se via pelo que escrevia nas redes, passando por vezes a ideia de agressividade”, acrescenta. Que renderiam ao autor acusações várias. “Por exemplo, que seria machista”, recorda o sobrinho. “Nada disso. O meu tio tinha caráter militar, foi educado num padrão talvez antiquado para 2025, mas era um homem de liberdade e justiça”. “De troca de ideias, e de convicções”, acrescenta, referindo a posição assumida sobre a guerra na Ucrânia - ataque a Zelensky, a Von der Leyen e a uma Europa que considerava “vergada à América”. Pensamento próximo do PCP, partido a que nunca quis pertencer. “Não, nunca fui comunista. Também deixei de acreditar em outros salvadores muito cedo. E também sou de tal forma arrogante, porventura, que não aceito que sejamos todos iguais”, disse na mesma entrevista. “Lúcido até ao fim”, de acordo com a família, “não pensava na morte”. Carlos Matos Gomes, nas palavras de Tiago, “enfrentava a doença sem um queixume. Adorava a vida, na companhia da família e dos amigos”. Joaquim Alves Henriques é um dos mais antigos. Conheceram-se com 14 anos no Colégio Nun’Alvares, em Tomar - aí cruzar-se-ia também com Salgueiro Maia, forjando uma amizade longa -, cidade para onde o pai foi destacado. “O Carlos era uma pessoa especial, gostava do confronto desde miúdo”. Partilharam interesses. Das férias na praia, recorda o rapaz “atlético, forte, alto”, do grupo de jograis, o gosto do adolescente pela poesia, o empenho cívico, e o envolvimento nas presidenciais de 1986, ao lado de Maria de Lourdes Pintasilgo. .Cresceu na divergência, primogénito de três: ele e duas raparigas. A mãe católica progressista, o pai, beirão de Vila de Rei, crente fervoroso e conservador, militar com simpatias pelo Estado Novo, nunca esconderam o orgulho no filho agnóstico e “muito voltado à esquerda”..“Era um desalinhado muito corajoso”, diz o amigo. Há cinco décadas, caso a revolução falhasse, estava preparado. Se assim fosse, fariam uma ação de tomada de poder na Guiné, contou ao Mediotejo.net, em 2021. “Felizmente tudo correu como estava planeado e nós, a Comissão Coordenadora do Movimento dos Forças Armadas da Guiné, ocupámos no dia 2 o poder na Guiné de acordo com as nossas próprias orientações, que não eram exatamente as mesmas da Junta de Salvação Nacional”. O que lhe valeria o desagrado de António de Spínola. Nada que o preocupasse muito.Matos Gomes iniciou a carreira militar em 1963, quando entrou para a Academia. Quatro anos depois, terminado o curso de Cavalaria, foi mobilizado para Moçambique. Tinha 20 anos. Cumpriu comissões durante a guerra colonial também em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Foi ferido em combate e altamente condecorado. A “Conquista das Almas” é o livro que escreveu com o coronel Aniceto Simões para a Biblioteca e Arquivo Ephemera.“Tinha um conhecimento muito aprofundado sobre o que eufemisticamente se chamava ação psicológica do exército sobre as populações”, recorda Pacheco Pereira. Neste caso, com um aspeto trágico: os desertores estavam identificados e eram exibidos. “Um homem rigoroso, com um grande conhecimento da matéria”, considera o historiador, relevando “a experiência operacional muito séria”. Em Moçambique, participou como líder de uma companhia de Comandos na operação Nó Górdio, em 1970. A maior operação levada a cabo na guerra em África foi tema de um dos seus romances: “Moçambique 1970”. Que assina como Carlos Vale Ferraz. Aniceto Afonso, coautor de “A Conquista das Almas”, comovido pela perda, remete para o que escreveu na página pessoal do Facebook. É uma homenagem ao capitão de abril “esclarecido, influente”, ao escritor “reconhecido e estudado”, mas, essencialmente, ao amigo “cosmopolita e grande contador de histórias”. O livro “Os Lobos não Usam Coleira” foi adaptado pelo realizador António-Pedro Vasconcelos ao cinema com o título “Os Imortais”. Matos Gomes também colaborou com Maria de Medeiros no filme “Capitães de Abril”. “Entendo a minha vida como uma aventura boa que tive oportunidade de viver, e essa participação nos ‘Capitães de Abril é uma revisão da nossa própria história; tem esse fascínio”, revelou ao Mediotejo.net.Considerava-se da geração D, classificação retirada de um dos livros que assume em nome próprio, “Da Ditadura à Democracia”, um caminho que Carlos Matos Gomes ajudou a abrir. Segundo informação da Associação 25 de Abril, o velório, ainda sem horários, terá lugar na Capela da Academia Militar, na Gomes Freire, Lisboa, amanhã, terça-feira. Na quarta-feira haverá missa de corpo presente e o corpo seguirá para o Cemitério do Alto de S. João, onde será cremado..Morreu Carlos Matos Gomes, capitão de Abril