Burlão ‘investiu’ dinheiro que não era dele e rebentou com um milhão de euros

Burlão ‘investiu’ dinheiro que não era dele e rebentou com um milhão de euros

Luís Miguel Silva convenceu os clientes de que tinha um método genial e infalível - um programa informático de ‘robôs’ comandados por inteligência artificial - para ganharem dinheiro na compra e venda de moeda estrangeira. Quem foi na conversa perdeu tudo. Ele fugiu, até que foi capturado.
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Luís Silva é um falador imperturbável. Nada o cala. Se fosse menos determinado nas conversas, sempre a querer ter a última palavra até sobre as coisas mais simples, ninguém teria dado pela sua fraca figura e ainda hoje talvez estivesse em liberdade. Mas ele pela-se por uma boa discussão. Baixo e magro, pera impecavelmente aparada, Luís agiganta-se e intimida, sem nunca levantar a voz, pelo fragor com que debate. Repete e repete os argumentos – tanto que até cansa ouvi-lo.

Travou-se de razões com o senhorio, num pequeno ‘pueblo’ galego na margem direita do Minho, ao ponto de o homem, exausto e derreado, chamar a Guardia Civil. Surpresa! Luís Miguel Silva, de 52 anos, natural do Cercal, no Alentejo, tinha um mandado de captura internacional a fim de ser extraditado e julgado em Portugal por 29 crimes de burla qualificada – que, segundo a acusação, lhe terão rendido mais de um milhão de euros (1.079.101 euros).

Luís Miguel andou em fuga durante cinco anos. O Ministério Público nunca conseguiu notificá-lo nas várias moradas conhecidas em Lisboa e no Cercal. Vivia refugiado na Galiza, a dois passos da fronteira, na vã esperança de que o tempo e a sua ausência tivessem o efeito de um tira-nódoas e o inquérito judicial ficasse pelo caminho. Mas a investigação do caso continuou imparável. Até que o Ministério Público, já a acusação estava pronta para seguir para julgamento, emitiu um mandado internacional de captura. Luís passou a constar entre o lote dos procurados pela Interpol.

Devia ter pensado duas vezes quando, numa manhã de maio do ano passado, voltou a discutir com o dono da casa em que vivia sobre uma imposição do contrato de arrendamento que lhe parecia em desacordo com a lei. Não era a primeira vez que esgotava a paciência do senhorio – mas seria a última. Não era o seu dia de sorte. Amarga agora numa cela do Estabelecimento Prisional de Caxias, nos arredores de Lisboa, em prisão preventiva, à espera de julgamento. 

Confissões de um recluso

Luís Costa Silva, detido em Caxias a aguardar julgamento, escreveu uma carta ao DN sobre os segredos do negócio que estoirou com mais de um milhão de euros de clientes que lhe confiaram o dinheiro. Eis as passagens fundamentais:

> Sou o operador de mercado autónomo mais antigo de Portugal a trabalhar no mercado financeiro. Digo isto com grande grau de certeza. 

> Tenho formação em economia, gestão, informática e agricultura.

> Faço consultoria financeira, consultoria de negócios, análise de mercados. Sou operador de mercado e criador de algoritmos. Esta última atividade é o topo deste universo financeiro. É preciso passar pelas primeiras atividades para se ter conhecimento e experiência de mercado que lhe confiram segurança para desenhar algoritmos.

> Com os meus robôs consegue-se trabalhar em frações de tempo ínfimas 

> Nada está garantido no mercado financeiro. Lucros passados não garantem lucros futuros. O cliente suporta todo o risco. Nunca sabe antecipadamente o resultado da ação dos ‘robôs’ associados à gestão de cada uma dessa contas. 

> Centenas de testes com o robô perante cotações reais provam que, em condições normais de mercado, o resultado será supeior a sete por cento por mês para uma conta maior de 100 mil euros. O cliente neste caso contratou uma mensalidade garantida de um por cento ao mês. A diferença de seis por cento será a gestão da conta, repartida pela renda mensal mais a remuneração, que terá de suportar toda a atividade da minha empresa.

O homem que dominava os mercados financeiros

Em finais de 2014, Luís Costa Silva instalou-se num pequeno escritório da zona do Parque nas Nações, em Lisboa – onde montou um negócio arriscado: aplicações financeiras com capital garantido e uma rentabilidade de aproximadamente um por cento ao mês. 
Os clientes foram aparecendo. Uns desconfiaram das virtudes do investimento. Outros, porém, deixaram-se contagiar pelo entusiasmo com que Luís falava do método que ele próprio criara para dominar os rebeldes mercados financeiros: um programa informático inovador que metia algoritmos, robôs digitais e inteligência artificial – tudo junto num formidável sortilégio que só podia resultar em fortuna.
Não se tratava de investir em ações nas mais frenéticas praças mundias, nem de aplicações em fundos ou em depósitos bem remunerados. Luís Silva jogava em tabuleiro mais seguro na compra e venda de dólares, libras, francos suíços. Os investimentos – dizia ele – eram realizados através de uma sociedade bancária suíça acima de qualquer suspeita, a Yandi SA/BWB, com sede no número 1201 da rua de Comavin, em Genève. Mas esta companhia – segundo o Ministério Público – nem sequer existia. Para conferir maior credibilidade ao negócio, constituiu uma firma, a BWB Consulting, de que era o único sócio e gerente.

Quem o ouvia falar não o levava preso. A clientela – a maior parte angariada por um homem com antigas ligações à banca que agiu de boa fé e nem sequer foi acusado pelo Ministério Público – sentia-se esmagada pelo palavreado daquele mago das finanças cheio de termos técnicos em inglês. Aquilo era muito saber!

Luís Costa Silva tinha a lição bem estudada. Inspirava confiança. Os investidores apreciavam-lhe a oratória – e confiaram-lhe quantias avultadas de 100 mil euros: acreditavam que o capital estava salvaguardado e que receberiam todos os meses a contrapartida de um por cento líquido. Nada tinham a perder. Não lhes ocorreu que Luís Silva não tinha autorização do Banco de Portugal nem da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.

O ‘financeiro’ estendeu-lhes documentos – a que deu o nome de Contratos de Gestão Externa e Aplicação de Investimentos – que em tudo pareciam verdadeiros: até tinham o timbre da insuspeita sociedade suíça Yandi SA/BWB, que afinal não existia, e o habitual arrazoado em letras miudinhas que ninguém lê. Tal contrato, segundo o Ministério Público, era a armadilha fatal. Os clientes, ao assinarem os papéis, transferiam para Luís Silva a gestão do dinheiro que lhe entregavam.

A queda estrondosa do ‘príncipe’ da finança

O negócio foi crescendo. O escritório tinha cada vez mais clientes. O andar arrendado no Parque das Nações tornou-se pequeno. Luís mudou-se para um espaço maior, na avenida Fontes Pereira de Melo. Não havia clientes insatisfeitos. Ele pagava-lhes religiosamente a contrapartida líquida de um por cento sobre o capital investido. As entregas de dinheiro cresciam – e Luís Silva não se cansava de explicar que o êxito das operações financeiras estava nos “robôs geridos pelo programa informático e movidos a inteligência artificial”. Um caso único em toda a praça financeira de Lisboa.

O homem que criou este autêntico exército de invisíveis robôs inteligentes via-se como uma espécie de Pedro Caldeira dos tempos modernos, o lendário corretor da Bolsa de Lisboa que, nos anos 80, se revelou uma verdadeira máquina de fazer dinheiro: o seu escritório, no coração da Baixa, já com 60 empregados, recebia todos os dias milhares de clientes – que esperavam em filas quilométricas à volta do quarteirão a sua vez para dar ordens de compra e venda de ações.

Luís Silva não negociava em ações, nem tinha filas à porta do seu escitório na avenida Fontes Pereira de Melo. Mas as instalações, embora espaçosas, deixaram de servir. Mudou-se para uns soberbos 412 metros quadrados a dois passos do Marquês de Pombal – um luxo comparável ao crescente êxito do negócio. Mas o seu fim estava para breve.

Ao contrário de Pedro Caldeira, que deu fortunas a ganhar da noite para o dia e acabou por ir na enxurrada do ‘crash’ bolsista de 1987, Luís Silva cavou a sua própria desgraça. Os seus ‘robôs’ movidos a inteligência artificial, que ele próprio criou através de algoritmos, capazes de dar ordens de compra e venda numa ínfima parte de um segundo, revelaram-se afinal uma milícia de seres aparvalhados que não deram conta da gestão do dinheiro – tanto assim que deixou de pagar à clientela. Foi o fim.

Quando Luís Silva deixou de pagar a remuneração mensal prometida, os clientes ainda ficaram na expetativa do retorno do capital. Enganaram-se. Não havia dinheiro para devolver. Apresentaram queixa. O Ministério Público interveio. Luís desapareceu para parte incerta – pelo menos, não foi encontrado nem no Cercal, donde é natural, nem na sua morada oficial, nos Olivais, em Lisboa. Nisto assemelha-se a Pedro Caldeira.

O antigo ‘príncipe da Bolsa’ também fugiu. Após o ‘crash’ bolsista, Caldeira viu-se a braços com uma dívida de 7 milhões de contos (35 milhões de euros). Tenta um plano. Seduz – como um encantador de ricos – algumas das maiores fortunas portuguesas. Pede-lhes dinheiro a troco de juros altos. Passará pelas suas mãos um valor incalculável de dinheiro. O corretor, às tantas, deixou de pagar. Fugiu. Foi capturado nos Estados Unidos e extraditado para Portugal. Respondeu no Tribunal Criminal da Boa Hora por dezenas crimes de burla. Seria absolvido.

O sonho de Luís Silva desfez-se em menos de quatro anos. Começou com o objetivo de criar uma empresa para competir no mercado financeiro e transformá-la num banco de investimento. Ambição não lhe faltava. O programa informático que imaginou, mais o diligente exército de ‘robôs’ digitais, não foram suficientes para o levar à glória – apenas a uma cela húmida de Caxias e, em breve, ao banco do tribunal. 

Luís queixa-se amargamente de que é um incompreendido. Ninguém o compreende. Os procuradores do Ministério Público e os inspetores da Polícia Judiciária – quaixa-se o recluso numa nota enviada ao DN(ver caixa nestas páginas) – desconhecem a mais simples regras do mercado finamceiro: nada está garantido e lucros passados não garantem lucros futuros. Se não entendem o essencial, como podem perceber o “método sofisticado” que ele utilizou para gerir o dinheiro dos outros?... Nunca hão de lá chegar. A acusação é, pois, uma “estultícia”.

O Ministério Público – talvez por deconhecimeno das regras do mercado financeiro – acusa-o de 29 crimes de burla qualificada. Os investigadores perderam o rasto do dinheiro no emaranhado de transferências entre bancos digitais. Só Luís Miguel Silva saberá o que fez ao milhão e uns trocos dos clientes. Diz que o dinheiro se perdeu, naturalmente, quando lhe bloquearam as contas. Os bancos digitais, explica, têm o hábito de arrecadar os saldos que ficam ‘esquecidos’ e deixam de ser movimentados durante algum tempo. 

manuel.catarino@dn.pt

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