Não podia deixar de ser o Time Out Market (TOM) o local do nosso encontro. Afinal, Ana Alcobia acaba de ser nomeada lead ibérica, com Londres - que comprou a operação ao fim de um ano de sucesso retumbante do conceito criado e alimentado aqui na Ribeira, pela alma lusa de João Cepeda - a delegar-lhe as responsabilidades de Lisboa, Porto e Barcelona. O objetivo é abrir portas ainda este ano na Estação de São Bento, aonde quer atrair "4 a 5 mil pessoas por dia", e alargar presença a Barcelona no ano que vem, num mercado capaz de servir perto de 9 mil clientes diários. "Lisboa ainda está acima", vinca Ana Alcobia, apontando uma média de 66 nacionalidades diferentes a experimentar a oferta da Ribeira todas as semanas, fazendo do TOM Lisboa "o local mais visitado da cidade, com mais de 4 milhões de pessoas por ano"..Antes da loucura da hora de almoço, pedimos café e água e sentamo-nos numa das mesas altas de madeira made in Paços de Ferreira, um dos traços identificativos em qualquer localização do Time Out e que leva Portugal pelo mundo. Vai-me contando a "grande aventura" que, não sendo nova - Ana já conta quase uma década de TOM e está habituada a partos difíceis (só o Porto, que vai nascer numa localização classificada pela UNESCO, já leva seis anos de preparação, ajustes, autorizações...) - ainda lhe dá algum nervoso miudinho. "É uma loucura, mas uma loucura ótima", resume, explicando que mesmo em Lisboa, ao fim de tanto tempo, "todos os dias há qualquer coisa nova para descobrir e fazer, adaptar às novas tendências"..Esse empenho constante é uma das razões que explicam que o Mercado esteja sempre à frente, que vá marcando ele próprio as tais tendências, da comida à sustentabilidade. "Somos o guarda-diurno do bairro, damos uma ajuda brutal ao mercado tradicional, temos um respeito gigantesco pelo ADN do edifício, tentamos sempre minimizar e compensar a nossa pegada pelo lado social. A questão do quilómetro zero é importantíssima e tentamos promover ao máximo que todos os lojistas comprem o máximo ao mercado tradicional. Durante a pandemia, o mercado tradicional sentiu muito a falta do TOM, porque nós promovemos essa interação; e só não existe mais porque o volume é tão grande que às vezes obriga a ir a mais fornecedores.".Assumindo a liderança dos mercados de Portugal e Espanha, o papel de Ana passa agora por supervisionar operações e fazer curadoria atenta aos enquadramentos locais. "Os mercados do Porto e de Barcelona têm muita coisa em comum: desde logo a localização histórica, as 14 lojas, são mercados mais pequenos do que Lisboa; e acima de tudo o que damos é o know-how, porque as equipas de gestão são totalmente locais, serão portuenses a fazer São Bento e catalães em Barcelona. Nós trabalhamos para o público local e os media lá têm uma força gigantesca. Vamos implementar o negócio, definir objetivos e ser um bocadinho os headquarters, mas não é uma intervenção diária." Essa caracterização à medida implica, por exemplo, que os contratos com os lojistas sejam curtos, habitualmente de 3 anos, porque nem todos os negócios se conseguem adaptar e o objetivo é que os TOM estejam sempre a marcar e a representar o melhor de cada cidade. "O papel dos jornalistas é importante nisso, porque dão os inputs daquilo que são os negócios que as pessoas querem ver naquele espaço.".Há também uma relação muito emocional com quem trabalha os espaços, e que vai além do facto de o TOM sempre ter sido "uma marca muito cool". "Sempre gostei que as pessoas sentissem felicidade de virem para o local de trabalho", diz Ana, entendendo que isso passa pelo reconhecimento do papel de cada um: o sucesso de um conceito como este passa por todos os que para ele contribuem. "Tenho pessoas, por exemplo, na equipa de limpeza a trabalhar connosco há mais de sete anos, apesar de serem de uma empresa de outsourcing, elas sentem que trabalhar no TOM, e isso é fundamental porque eles são parte do nosso front office." Fala da equipa de limpeza, de segurança, de manutenção, a quem todos os anos dedica um momento especial para partilhar os resultados e agradecer a prestação. Nos tempos mais difíceis da pandemia, não cobraram renda aos lojistas, pagaram salários, subsídios e apoios a todos. tudo isso pesa na camisola que se veste..Nem sempre a vida de Ana Alcobia foi esta. A mulher que se licenciou em Marketing e Relações Públicas no Instituto de Novas Profissões com a ideia firme de ter um papel ao nível dos "homens do presidente" - "queria ligar-me às relações públicas à séria, mas o meu caminho acabou por derivar para a criatividade" - viu-se a trabalhar em agência e logo a ser puxada para a Sonae Sierra. "Trabalhei no CascaiShopping, o mais antigo centro comercial do grupo, passei para o maior, o Colombo, abri o de Loures e depois voltei para Cascais como diretora de marketing", elenca. Foi então que recebeu o telefonema que lhe mudaria a vida toda: a revista Time Out vinha de Londres para Portugal e queria-a a bordo como diretora de marketing. "Era a minha cara. Eu adorei trabalhar na Sonae e muito do que continuo a fazer bem aprendi lá, mas precisava de um lado mais de novidade e de tendência. Todas as festas, eventos fora do comum, tudo isso foi pensado pela minha equipa, foram anos maravilhosos. Andávamos sempre no fio da navalha - como toda a gente sabe, empresas de media não nadam em dinheiro -, mas sempre conseguimos fazer coisas completamente fora da caixa e reconhecidas por todos", lembra..O TOM surgiu do engenho aguçado pela necessidade. "Quando tivemos o desafio por parte do grupo de colocar todos os conteúdos online, estávamos a vender 10 mil revistas em Lisboa e outras tantas no Porto e sabíamos que não seria saudável ter conteúdos gratuitos online, significaria perder tudo. Então sentámo-nos para pensar como fazer rentabilizar conteúdos sem prejudicar a neutralidade e independência que nos marcavam." A ideia de um espaço de mil metros quadrados em Lisboa, que pudesse ser uma plataforma e em que todos os meses havia um chef diferente, uma apresentação de livro, uma banda, e ir levando os conteúdos às pessoas como experiência, materializou-se em 10 mil metros quadrados com 50 lojistas, estúdio e constantes novidades da Ribeira, que se alarga pelo mundo inteiro. O Time Out Market abriu, além de Lisboa (e Porto e Barcelona), em Miami, Nova Iorque, Boston, Chicago, Montreal e Dubai, estando ainda planeado para Osaka, Praga, Cidade do Cabo e Abu Dhabi..Mas a mudança profissional havia de trazer também a Ana uma vida diferente. Foi nessa altura que conheceu João Cepeda, diretor da revista e criador do conceito do mercado, com quem anos mais tarde viria a casar. "Na altura foi estranho, até para a equipa..." Mas hoje têm quatro filhos e ainda mais cumplicidade (João Cepeda saiu há um ano, para diretor de comunicação do governo). "Quando o grupo Time Out nos comprou, puseram a questão de sermos casados, mas eu disse e mantenho: sou casada com o João (então ainda há muito pouco tempo), mas trabalhei tantos anos com ele sem pensarmos que íamos ficar juntos que me é mais difícil viver com o meu chefe do que trabalhar com o meu marido. Conseguimos sempre separar as águas, até porque eu sempre tive um lado muito mais operacional e o João é muito mais estratégico, complementamo-nos.".O dream team mantém-se e solidificou-se na educação das crianças, entre os 14 e os 4 anos - "foram dez anos de bebés", ri-se. Ana é filha única e sempre quis uma família muito grande, e vê-se bem que as três filhas e o "bebé" Zé, que "manda lá em casa e faz o que quer das quatro "mães"", a realizam. Brilham-lhe mais os olhos quando os descreve como totalmente diferentes, sorri de forma diferente quando os conta cada um distinto do outro, a provar que a educação é só uma parte da equação filial. "A Leonor é muito desportista, a Clara é claramente artista, a Benedita é toda organizada... e o Zé é um amorzinho que ainda está a descobrir o seu lugar. Não podia ter quatro filhos mais diferentes. Senti que as minhas filhas nasceram todas muito independentes e ele fez-me sentir aquele verdadeiro amor dos rapazes, como quando uma pessoa acorda com umas orelhas até aos joelhos e ele me agarra a cara e diz, "oh mãe, tu és tão linda!"".Ana não tem dúvidas de que o amor cresce a cada filho que nasce, mas sabe que o tempo não estica. E é por isso que desistiu - adiou? - de alargar mais a família. "Gostava de adotar, tinha esse projeto, mas seria injusto fazê-lo à custa de exigência do tempo dos outros. Neste momento, não tenho o tempo necessário a fazer uma criança feliz.".Na sua organização familiar e profissional, nunca sentiu complexo de gozar as licenças de maternidade, de estar presente na vida dos filhos, e não tem dúvidas de que isso faz parte da sua felicidade completa: "Eu não seria a gestora que sou se não tivesse tido os meus quatro filhos, porque isso era um objetivo de vida. E os meus filhos também sempre entenderam que a mãe às vezes não está em casa porque também tem gosto em trabalhar - e sentem orgulho nisso." Usa um método para lhes ensinar o valor do trabalho, da conquista, para os recompensar de terem de partilhar a mãe: fê-los acionistas da sua vida. "Sempre que recebo o prémio da empresa, distribuo uma pequena quantia por todos eles, para que sintam que fazem parte desse prémio. E tenho a certeza que lhes vou mostrar esta entrevista, como mostro quando o pai aparece na televisão ou sempre que um de nós tem algum tipo de reconhecimento público, para que sintam que estamos a contribuir para a cidade, para a evolução do próprio país, e terem orgulho nisso.".Aprendeu estes métodos na educação que recebeu. O pai era oficial de Marinha, passava muito tempo fora de casa, e a mãe, que geria praticamente a solo a contabilidade da Kodak ibérica, sempre a fez ver que havia necessidade desse serviço e ela devia orgulhar-se. "Foi-me dada essa ideia de que tudo na vida tem uma compensação quando nos entregamos e fazemos com gosto, e transmito isso aos meus filhos para que um dia sejam eles a contribuir para a sociedade.".Ana Alcobia nasceu e cresceu em Lisboa, filha de pai e mãe alfacinhas - "uma raridade". "Nasci nos Socorros Mútuos de Empregados no Comércio, totalmente downtown, e sempre adorei viver aqui. Houve três anos em que o meu pai foi colocado em Roma e os meus pais lá viveram e eu nunca quis ir." Tinha 19 anos, mas já então o que mais gostava de viajar era voltar para a sua cidade, os seus amigos. "Acho que descobri cedo o que os estrangeiros veem em Lisboa, que é um sítio fantástico para se viver." Ao contrário do marido: "Fui casar com uma pessoa que adora viajar e já viveu em 380 países", ri-se. Foi uma infância feliz e completa, compensada a falta de irmãos pelo "clã de Carnaxide"; fazia desporto (atletismo, andebol, kickboxing) e vida de bairro, estava na rua até de noite. E ainda experimentou uma faceta que a podia ter levado a um caminho bem diferente, a política.."Toda a vida eu disse que queria ser psicóloga; andava na Belém-Algés e fui para Ciências com Biologia por isso, mas entrei na aventura das associações de estudantes e comecei a perceber que adorava tudo o que fosse associativismo, que podia ser uma vertente bonita no lado político." Foi nessa altura que se atreveu a ver-se como uma "mulher do presidente", mas desiludiu-se ao entender a mecânica dos partidos. Vivia-se uma fase embrionária das jotas e Ana filiara-se na JSD, secção de Linda-a-Velha, mas arrepiou caminho quando começou a ver a dimensão da máquina. Nunca teve pena de tomar a decisão de se afastar: concluiu que a política não é o caminho mais fácil para mudar alguma coisa na realidade que nos rodeia. "A nossa capacidade de mudar o país também está muito na iniciativa privada e um projeto como este veio provar-mo. Se há 12 anos alguém dissesse que ia comprar uma casa no Cais do Sodré, diria que era doido, não era o melhor bairro para investir - nós não tivemos financiamento, nenhum banco acreditava nesta ideia... E hoje é dos bairros mais procurados, caros, e eu sinto que tive um bocadinho de influência nisso, com o Mercado.".É por isso também que defende um papel cada vez mais ativo da iniciativa privada, a ajudar o Estado com associativismo corporativo a aproximar as instituições públicas da realidade empresarial. E que se puxe pelo empreendedorismo: "Os verdadeiros empreendedores em Portugal são muito mais empreendedores do que nos outros países, porque é muito difícil ser empreendedor num país como o nosso." Isso faz-se, defende, pondo os portugueses a apoiar portugueses, o que ainda não acontece, pondo os fundos de investimento portugueses a investir em ideias portuguesas, ensinando o empreendedorismo nas escolas para acabar com a ideia de que falhar obriga a desistir..Pergunto-lhe o que seria um bom próximo passo para o Time Out Market e nem hesita em identificar o crescimento na Península Ibérica. "A Europa tornou-se um grande espaço de investimento. O TOM começou por se expandir aos EUA pela facilidade empresarial, mas é completamente talhado para ser uma marca de crescimento na Europa." E Ana está como peixe na água para liderar esse processo. Ainda que diga que já atingiu as suas ambições - "eu não desejo ir mais longe, quero é aproveitar o que conquistei, o que me faz feliz; felicidade é isto, e é preciso saber reconhecê-la e apreciá-la". Mas tem ainda um bichinho lá dentro, o da formação. "Fiz alguns seminários e dou aulas pontuais, mas gostava que esse lado da minha vida fosse mais regular", assume. Seria um prazer pessoal que se juntava a uma necessidade que reconhece, de a universidade também descer ao terreno, ao lado mais operacional e prático daquilo que quase só se aprende quando se entra numa empresa. Mas também da importância da Inteligência Emocional. "É isso que nos vai distinguir da Inteligência Artificial. Caramba, o Cristiano Ronaldo é o melhor jogador do mundo e continua a chorar quando vê um cartão vermelho! Isso mostra o empenho dele - e prova que as emoções não são um problema, se soubermos geri-las, são uma imensa vantagem.".No dia-a-dia, Ana nunca desliga, o que significa gastar power banks atrás de power banks para responder à "extrema dependência" que tem do telefone: "Posso estar em qualquer lado a fazer qualquer coisa, vou à consulta do médico do miúdo e estou a ver o projeto de Barcelona em simultâneo." Mas detesta "reuniões aos quadradinhos": a videochamada não permite tirar pleno potencial das pessoas e impede de ver esse lado emocional, o que esperam e desejam umas das outras e dos projetos.."A relação humana é fundamental para sermos felizes. Eu seria muito infeliz se me pusessem 8 horas por dia em frente a um computador." Talvez por valorizar tanto o lado humano passe muito tempo "sentada a olhar", a avaliar comportamentos. "São estudos fisiológicos, fico a ver como as pessoas se comportam em espaços públicos.".Acima de tudo, Ana aprendeu a delegar e confia tudo à sua "espetacular equipa". Admite até que o seu maior talento é escolher pessoas - e também por isso ficou contente por ver que, quando subiu de funções, quase toda a equipa subiu com ela. "Quando me pedem uma job description, tenho vontade de escrever que sou uma croupier, porque o que eu faço é distribuir jogo. Recebo os problemas, distribuo por quem acho que os vai resolver da melhor forma, vou dando orientações. E de vez em quando tenho de voltar a apanhar tudo e redistribuir."