Revisão urgente da Constituição e votação em dois dias, admitem constitucionalistas

O primeiro-ministro garante que não é possível restrições à atividade política, mesmo com medidas fortes de confinamento. Constitucionalistas admitem que a campanha e o dia da eleição possam ser ajustados. Existem propostas para evitar concentrações.

No dia que que anunciou que o país poderá entrar dentro em breve num novo confinamento geral, apenas atenuado pelo funcionamento das escolas, o primeiro-ministro garantiu também que a lei que rege o estado de emergência "não permite qualquer restrição à atividade política". António Costa garantiu também que há condições para que o ato eleitoral, a 24 de janeiro, "decorra com toda a normalidade".

Mas Costa admitiu que "é uma questão de imaginação" os candidatos superarem os problemas que as novas restrições vão suscitar no contacto com os eleitores. "Teremos de nos adaptar a esta nova realidade como em todos os aspetos da nossa vida, mas fazer que todas as instituições democráticas continuem a funcionar com normalidade", frisou.

A verdade é que a normalidade, mesmo prevista pela Lei do Estado de Emergência de 1986, vai obrigar as autoridades públicas a determinar as regras sanitárias para que os candidatos à Presidência da República possam andar em campanha pelo país.

Constitucionalistas ouvidos pelo DN estão de acordo quando à necessidade de no decreto do estado de emergência que deverá ser renovado no dia 15 de janeiro, até já depois de ter começado a campanha (que oficialmente arranca a 12 de janeiro), definir um conjunto de medidas adequadas às iniciativas das presidenciais. Por exemplo, o número de participantes em comícios e sessões de esclarecimento.

"Pode e deve haver medidas", frisa ao DN o constitucionalista Paulo Otero, mas adverte que "não devem ser criadas limitações exageradas", porque de outro modo constrangeria a ação política.

Defende que no próprio dia da ida às urnas, em vez de horários reduzidos para os eleitores conseguirem escolher o seu candidato a Belém, deveria era existir um prolongamento de horário de votação, até as 22.00 ou 23.00, para que se possa garantir "um adequado fluxo de votação" e evitar concentrações de eleitores que se dirijam às assembleia de voto.

Nessa senda da "imaginação" pedida pelo primeiro-ministro, Paulo Otero avança com uma proposta: a de distribuição de senhas numeradas aos eleitores precisamente para evitar as concentrações.

O constitucionalista insiste que o estado de emergência protege a atividade política, mas também prevê a suspensão de liberdades que se justifiquem para proteger, no caso, a saúde dos cidadãos.

Pedro Bacelar Vasconcelos, constitucionalista e deputado do PS que está envolvido na campanha de Ana Gomes, defende que as medidas que vierem a ser adotadas para as campanhas não podem chegar a ponto de as "invalidar", tal como o exercício do direito de voto.

Tal como Paulo Otero, entende que para evitar concentração de pessoas nas mesas de voto é impossível realizar as eleições apenas numa manhã, mesmo que nos dias antes de 24 de janeiro, um domingo, possa estar a vigorar um recolher obrigatório ou haja confinamento mais apertado.

Jorge Reis Novais também não tem dúvidas de que, dado o estado da pandemia, com as infeções em números recorde, é impossível que o estado de emergência termine no dia 15. E nessa altura, "quando o estado de emergência for renovado, os órgãos de soberania responsáveis - Presidente da República, Governo e Assembleia da República - dirão que medidas serão ajustadas à altura", diz. Reis Novais não crê "que haja dificuldades de ordem jurídica" neste processo.

Jorge Miranda, considerado um dos pais da Constituição de 1976, subscreve o que os outros constitucionalistas dizem sobre as medidas adequadas à campanha, porque se trata de conjugar os direitos políticos com "uma situação de salvação pública".

Mas vai mais longe e desafia o poder político, no caso o PS e o PSD, a fazer "uma revisão constitucional urgente" para permitir, como existe noutros países, que em vez de um dia de votação haja dois. Mas isto para a Presidência da República, para a Assembleia da República ou até para as autarquias locais, ato eleitoral que ocorre em outubro deste ano.

A Itália é um dos países onde as eleições se desdobram em dois dias, normalmente no segundo apenas até à hora de almoço.

Já sobre a possibilidade de as presidenciais serem adiadas, se a situação pandémica se agravar, Jorge Miranda manifesta-se contra: "Sou contra o adiamento das eleições. Não se sabe quando a pandemia vai acabar e o adiamento iria implicar com o mandato presidencial", justifica. Mandato esse que acaba a 9 de março, data em que Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse, em 2016.

Mesmo com campanhas a decorrerem, a pandemia poderá ter um efeito muito marcante nestas eleições presidenciais. As sondagens já começaram a apontar esse impacto, ao mostrarem que a abstenção poderá ser um recorde, mesmo acima dos 60%.

Os constitucionalistas também são unânimes a considerar que do ponto de vista constitucional não há fasquias para um Presidente ser eleito. Mesmo que um só eleitor, num cenário que é completamente fora da realidade, fosse votar, o candidato em que ele depositasse o voto seria eleito, como diz Pedro Bacelar Vasconcelos.

Se do ponto de vista legal, por mais absurdo que possa parecer, é possível eleger a mais alta figura do Estado com um nível muito baixo de eleitores a ir às urnas, os custos políticos podem ser muito altos com uma subida drástica da abstenção, que todos os constitucionalistas admitem que pode acontecer. "A pandemia pode agravar a abstenção, mas há também a conjugação do fator sanitário com o político, já que se trata de uma eleições em que há um recandidato, e o fator psicológico", frisa Paulo Otero. Ora, tal poderá configurar uma "situação explosiva" se a taxa de abstenção for mesmo muito acima dos 50%.

Se assim acontecer, o constitucionalista considera que se pode dar mesmo uma alteração nos resultados expectáveis. E sem citar nomes, profetiza: "Quem quer contestar é que vai mesmo votar, os outros podem desmobilizar, e uma situação dessas até pode obrigar a uma segunda volta."

Uma eventual abstenção muito alta "é politicamente grave", diz Pedro Bacelar Vasconcelos, porque decorre de duas coisas: "De a campanha ter decorrido dentro deste contexto e de a oportunidade dos candidatos ficar mais reduzida." O constitucionalista justifica que, como um dos candidatos é Presidente da República, e por isso com maior notoriedade, isso introduz neste contexto "uma assimetria flagrante" em relação aos adversários.

"São inúmeros os efeitos perversos", sublinha, recordando que, por isso, "noutros países foram adiados atos eleitorais". O que está fora de questão para as presidenciais, já que o processo eleitoral está em curso.

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