Os dois principais candidatos à liderança do PS parecem envolvidos uma corrida para ver quem é o melhor herdeiro de António Costa. Isto quando temos, pela primeira vez na história da democracia, uma maioria mono partidária que caiu a meio e outra coisa que também nunca tinha acontecido: um primeiro-ministro que se demite a braços com a justiça. A pergunta é: que sentido faz ser herdeiro disto? A questão não é ser herdeiro ou deixar de ser. Há uma governação de oito anos liderada por António Costa. Temos orgulho nos resultados desta governação. E por isso há aqui uma dimensão das nossas candidaturas que quer dar continuidade ao muito trabalho que tem sido feito. Mas sem que isso signifique que não haja também novo impulso, uma mudança. Mas este legado é um legado sobre o qual temos orgulho, isso sim..Neste momento é uma parte muito importante dos discursos, tanto num candidato como noutro. Mas, pergunto, quando for a campanha das legislativas essa parte tenderá a ter menos peso, quando for para falar ao país em vez de ser só falar aos militantes do PS? Os resultados da governação do PS devem estar sempre em cima da mesa na campanha [para as legislativas]. O resultado da governação também está em jogo. Eu não sou, nem era, primeiro-ministro, mas apresento-me por um partido que governou Portugal oito anos e isso também está em julgamento..Mas há setores onde os diagnósticos são maus: educação, na saúde, na habitação. Como é que se protagoniza esta herança e ao mesmo tempo se tentam pôr os contadores a zero e fazer os portugueses acreditar que é possível melhor com o mesmo PS. Não há contadores a zero nesta matéria. O país cresceu sempre acima da média europeia ao longo desses últimos oito anos. Aproximou-se da média europeia. Criou-se um número quase recorde de postos de trabalho, mais de seiscentos mil postos de trabalho em oito anos, são mais cinco milhões de portugueses a trabalhar. O salário mínimo subiu 62%, de 505 euros para 820 euros, em janeiro de 2024. São resultados muito importantes. Mas há coisas que não estão bem e e sobre as quais nós queremos investir. E qual é a diferença? A diferença é que nós acreditamos no SNS e na escola pública e no seu caráter público e universal, coisa que o PSD não acredita. Por isso, o nosso compromisso com a melhoria do SNS e da escola pública é muito mais credível do que qualquer promessa que o PSD possa fazer sobre o Estado Social..O que é que sente um socialista quando vê o SNS com cada vez mais dificuldades, nomeadamente de recursos humanos, e ao mesmo tempo vê o setor privado da saúde a crescer bastante, com cada vez mais pessoas a aderirem a seguros privados de saúde. Como é que vê este esvaziamento do setor público face o crescimento do setor privado? Vejo com preocupação, como todos os portugueses. Quero que o SNS dê resposta às necessidades das pessoas e que elas não sintam essa necessidade de ter seguros privados de saúde, como se fossem uma forma de acesso à saúde. Em Portugal houve investimento, isso não podemos negar, e foi um investimento importante ao longo dos últimos anos. A despesa hoje com o SNS é superior àquela que era em 2015. Mas vivemos também em sociedades mais envelhecidas, consomem mais cuidados de saúde e há uma pressão também do lado dos equipamentos, dos medicamentos que tornam a despesa com a saúde numa despesa crescente. E há outros problemas: o Estado deixou ao longo dos anos os profissionais de saúde, principalmente os médicos, terem uma quebra de poder de compra muito significativa. Hoje o SNS tem dificuldades reais e conhecidas não só em recrutar mas também em reter profissionais de saúde..Mas tem alguma proposta diferente a fazer, por exemplo, na questão salarial dos médicos e na questão da dedicação exclusiva? Ou a solução que foi acordada fica assim e não se avança mais? Há um pré-acordo, que é muito importante, mas julgo que há ainda margem para trabalharmos, porque ainda temos dificuldades. Ainda temos problemas e temos que trabalhar com os médicos e encontrar uma solução. Não quero condicionar uma negociação com os sindicatos. Acho que há trabalho aqui a fazer para garantirmos a paz que permita encontrarmos uma solução para o SNS que passe por ter os médicos envolvidos. E há por outro lado uma reforma do sistema de gestão que foi aprovada e que devemos deixar que se consolide. Mas verdadeiramente, para essa reforma da gestão ter sucesso, nós temos que ter os médicos, e os profissionais de saúde em geral, em paz com o Estado e em paz com SNS..Na questão dos professores também se compromete com a ideia de o pagamento integral daquele tempo não contabilizado? Qual é a sua a sua posição? É tão simples quanto isto: o Estado impõe ao setor privado que cumpra os contratos com os seus trabalhadores. O Estado também tem que dar esse exemplo e, por isso, deve cumprir os contratos com os seus próprios trabalhadores. Portanto, há aqui uma dimensão de princípio. Há um conjunto de regras de progressão na carreira por parte dos professores e essas regras devem ser cumpridas. O que é que nós queremos fazer? Queremos encontrar um faseamento para a medida e que isso seja compatível com o cumprimento das metas orçamentais. Temos que fazer este equilíbrio entre conseguir cumprir o princípio da reposição integral do tempo de serviço dos professores e o cumprimento das metas orçamentais, que devem continuar a ser cumpridas pelo futuro Governo português..Foi ministro da Habitação durante cerca três anos. Faz algum mea culpa relacionado com a situação mais ou menos explosiva que se vive atualmente no mercado da Habitação? As razões desta explosão não têm a ver com as políticas que foram seguidas no curto prazo nem propriamente apenas com as políticas seguidas em Portugal. É um fenómeno que é europeu, transversal a todas as capitais e a todos os grandes centros urbanos na Europa, não é uma característica particular de de Portugal. Aquilo que nós, apesar de tudo, fizemos nos últimos anos, foi lançar o maior plano de investimento em habitação pública na história da nossa democracia. Infelizmente esse plano de investimentos não produz resultados automáticos. Esse processo está em curso mas foi lançado pelo Governo quando eu era ministro. E quando eu falo de resposta pública, não estou a falar apenas de habitação pública para as classes mais carenciadas da nossa população, mas também para a população de rendimentos intermédios. O plano que lançamos em matéria de habitação pública tem como objetivo chegar à classe média..Vamos à Operação Influencer. Tudo aquilo, independentemente de haver crime ou não, remete para uma ideia de informalidade excessiva na na relação entre entre empresários, influenciadores e membros do Governo. É normal aquilo tudo? Não quero fazer um juízo particular sobre o caso, não ajuda nada. No entanto, a relação entre investidores privados e o Estado deve estar enquadrada em procedimentos previsíveis e transparentes e devemos ter esse cuidado e ter essa preocupação. Mas não quero dizer muito mais do que isso. O processo judicial está a correr e não queria [comentar mais] porque qualquer leitura que faça sobre sobre a relação de investidores privados com o Estado vai remeter para o caso judicial em em causa. Mas obviamente que os canais de relação institucional entre empresas privadas e o Estado devem estar estabelecidos e ser transparentes. Os procedimentos devem ser conhecidos por todos para que todas as empresas sintam que estão em pé de igualdade na relação com o Estado..Regulamentação do regime de lobbying. É contra ou a favor? Teremos ainda tempo para apresentar o programa eleitoral do PS. É um tema que queremos revisitar..José Luís Carneiro há tempos disse que a sua atual atitude pública neste confronto atual é resultado de uma operação "cosmética". Como é que responde a esta crítica? Não há uma mudança em mim. Estou como sempre fui e defendo o que sempre defendi. Não há nenhuma alteração, nem da substância nem da forma..O PS tem o seu líder de há quase dez anos, António Costa, a ser alvo atual de um inquérito, no Supremo. O ex-primeiro-ministro socialista José Sócrates foi envolvido numa operação judicial, há quase dez anos. Acha isto normal? Não podemos misturar temas, misturar casos, misturar pessoas. Com cautela e com serenidade digo que temos que esperar para que a Justiça faça o seu caminho e não nos anteciparmos nem sermos injustos com ninguém. Há dois princípios fundamentais, o da presunção da inocência e o da independência do poder judicial, que devem ser escrupulosamente respeitados por quem é político..Na semana passada, foi arquivado por falta de provas um inquérito que visou Pedro Siza Vieira, Fernando Medina, Duarte Cordeiro e Graça Fonseca. Foi arquivado por não haver "qualquer indício de criminal na matéria em apreço". Acha normal serem necessários sete anos para chegar a esta conclusão? Não, não acho..E então? Temos de perceber quais são os bloqueios e as razões para que os processos demorem. Tem de se identificar onde se deram os bloqueios para garantir que eles não demoram tanto tempo, não só para os envolvidos mas para o próprio país. Estamos a falar de responsáveis políticos e o impacto que isso tem no funcionamento democrático é relevante e é significativo nos direitos individuais das pessoas também. Precisamos que a Justiça tenha a possibilidade de ser mais célere..Há ou não um problema de justicialismo em alguns setores do Ministério Público contra o PS? José Sócrates, por exemplo, tem insistido para que o PS abandone a atitude passiva de que o conduziram à condição de, no entender dele, o PS ser a "vítima perfeita" do Ministério Público. Como comenta? Não quero fazer nenhum comentário sobre declarações de ninguém em particular. Não nos escondemos atrás de nenhum biombo. A independência do poder judicial deve ser escrupulosamente defendida e preservada. Isso não quer dizer que não se deva fazer uma reforma da Justiça, mas ela não deve ser feita em cima de casos judiciais. Não é uma boa forma de discutirmos a justiça em Portugal. Não tenho nenhum problema em pensarmos a reforma da Justiça nas suas variadas dimensões, mas acho que pensada em cima de processos judiciais não deve ser feita. Devemos respeitar o tempo da justiça e devemos respeitar as instituições judiciais que fazem o seu trabalho..Se a investigação a António Costa der em nada, a procuradora-geral terá que de se demitir? Quero tentar manter essa disciplina de me cingir a dois princípios do Estado de Direito fundamentais, que já disse que são a presunção da inocência e a independência do poder judicial. Não queria ir para lá disto..Acha normal que o seu ex-colega de Governo e camarada João Galamba esteja quatro anos sob escuta telefónica? Não, não acho. Foram quatro anos e 82 mil interceções de comunicações. É importante que haja uma boa justificação para se terem prolongado durante tanto tempo escutas a um cidadão que, neste caso, assumia funções governativas..Fala ao telefone como se tivesse sob escuta? [Longa pausa] Falo normalmente ao ao telefone mas temos sempre que colocar essa hipótese. Qualquer cidadão pode, em última instância, estar a ser escutado..Admite que Costa se precipitou ao demitir-se? É uma decisão individual que a ele cabe explicar e não devo especular sobre isso..Acredita mesmo que a carreira política dele morreu. Não, não acho que tenha morrido, Acho importante que ele possa vir a desempenhar cargos políticos, seja cá ou lá fora..No que depender de si... Pôr as coisas assim não faz sentido. Isso depende dele. Depende da sua vontade e com certeza que terá o apoio do PS para aquilo que ele entender vir a exercer no futuro..Vencendo ou perdendo as eleições no PS: terá o dever de dissolver as suas forças e envolver-se num esforço de de de reunificação interna depois de escolhido o novo líder? O Partido Socialista foi sempre sendo capaz, ao longo da sua história, de se reagrupar, unir e concentrar no combate externo. É isso que eu acho que deve acontecer desta vez e estou convencido de que isso será possível..Se vencer, contará com José Luís Carneiro exatamente para quê? Não estamos no momento de estar a fazer esse tipo de de de juízos. Mas há uma uma vontade, por princípio, de o conseguirmos envolver no projeto do Partido socialista..Se for candidato a primeiro-ministro tem ou não o dever de transparência perante os eleitores em geral, de previamente, explicar detalhadamente qual será a sua política preferencial de alianças. É um debate que não é antecipável. Qualquer solução do Governo dependerá da relação de forças entre os diferentes partidos e nós não conseguimos prever qual vai ser a relação de força. Por isso, aquilo que é mais acertado é nós estarmos concentrados em apresentar o nosso projeto, a nossa candidatura, o nosso programa, conseguirmos o melhor resultado possível para o PS e para esse programa e encontrar a solução que oferece mais possibilidades de nós conseguirmos cumprir de forma fiel o nosso programa..Exclui uma solução do tipo "bloco central" (coligação de Governo PS+PSD)? Não é bom para a democracia uma solução que em que os dois maiores partidos estejam no Governo a apoiar-se no Parlamento. É negativo do ponto de vista desde logo democrático porque o sistema precisa de alternativas e precisa de válvulas de escape e não pode ser o Chega..O que é que isso quer dizer, exatamente? Se os dois maiores partidos estiverem comprometidos com a governação isso acaba por facilitar o processo de afirmação do Chega..Será possível um agenda comum à esquerda que não seja só, como foi na geringonça, de revogar coisas que consideravam mal feitas? É possível um entendimento pela positiva entre partidos que não se entendem, por exemplo, na questão das "contas certas"? Eu não partilho a ideia de que aquele Governo esteve apenas a reverter medidas da troika. Houve áreas onde houve aprofundamento no Estado Social. É possível fazer coisas novas, como foi nesse primeiro Governo [da geringonça]..Pode voltar a acontecer uma situação em que o PS forma o Governo sem ter vencido as eleições? Seria ridículo dizer que isso não pode acontecer..Vamos falar de eleições futuras presidenciais. Se vencer no PS, acha que desta vez o PS tem que ter candidato. Acho e sempre achei. Continuo a achar. As candidaturas são pessoais mas isso não pode ser desculpa para que o PS não participe de forma ativa numa campanha que tem impacto tão grande na vida política na vida coletiva como são as presidenciais. O PS tem de apoiar um candidato..O candidato pode ser Augusto Santos Silva? Ou Francisco Assis? Não faz sentido falar em nomes..Privatização da TAP. Afinal qual é a sua posição? Na sua moção não vem nada. A minha posição é a mesma de sempre. Já a defendi quando apresentamos o plano de reestruturação em Bruxelas. A TAP não pode ficar sozinha no mercado global da aviação e que devemos abrir o capital da empresa a grupos de aviação..Com o Estado maioritário? Devemos ter como objetivo manter a maioria do capital. Acho que nós devemos partir para qualquer negociação com este objetivo e depois vermos quais são as possibilidades de conseguirmos concretizá-la..Aeroporto: no passado ficou claro que não era grande adepto da necessidade imperativa de consensos com o PSD sobre a localização. Mantém essa reserva? Devemos procurar o consenso e não tem de ser ao centro - todos os partidos devem ser envolvidos. Se ele não for obtido, temos que decidir na mesma. O Governo tem que decidir, chegue a acordo ou não chegue a acordo. Não podemos é estar mais anos à espera de decidir uma infraestrutura com aquela importância..Se for candidato a primeiro-ministro e perder deixa a liderança do PS? Acredito ser possível o PS ganhar as eleições. E nós estamos a trabalhar num cenário que é o cenário de vitória. Qualquer outra questão só será pensada depois do dia 10 de março..joao.p.henriques@dn.pt