Política
08 julho 2022 às 05h00

António Correia de Campos: "Finanças não confiam na Saúde e são quem hoje gere o setor"

O ex-ministro da Saúde rejeita os pedidos da oposição para o afastamento da ministra Marta Temido, acusa as Finanças "de não terem confiança no Ministério da Saúde e hoje quem gere a Saúde são as Finanças" e defende que "não podemos acabar com o setor privado".

Rosália Amorim e Nuno Domingues (TSF)

António Correia de Campos tem 79 anos, nasceu perto de Viseu, tem uma longa carreira académica como professor da Escola Nacional de Saúde Pública e trabalhou no Banco Mundial. Foi duas vezes secretário de Estado em governos socialistas - no segundo de Guterres e no primeiro de Sócrates - e também ministro da Saúde. Foi deputado, eurodeputado e presidente do Conselho Económico e Social nos anos da geringonça.

A culpa do atual colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é dos gestores, dos políticos, dos médicos? De quem é a culpa?
Acho que devia mudar a palavra "colapso" para aquela palavra dramática que tem estado a ser usada: "caos". Nem é colapso nem é caos. 75% dos portugueses continuam a ir ao SNS, e entre 25% e 30% dos portugueses utilizam cuidados de saúde privados, mas quando precisam de cuidados de complexidade, vão ao serviço público. Sobretudo, quando aparece uma epidemia é ao serviço público que recorrem.

Não há um colapso, mas há um problema?
Há problemas, naturalmente, todas as instituições e todos os modelos de governo têm problemas complexos.

Suficientemente complexos para ter de se apurar culpas?
É evidente que a culpabilização é apenas uma escapadela fácil. Historicamente, tranquilizamos a consciência ao encontrar um culpado, isso faz parte da natureza humana. O que é preciso é analisar as verdadeiras causas do problema, e é uma pena que as pessoas que se dedicam à investigação sobre os sistemas de saúde não estudem o que se tem passado nos últimos 20 anos em Portugal. Sobretudo, com o grande crescimento do setor privado em Portugal. Os ingleses tiveram, desde 2012, uma lei que atribuiu uma importância muito grande ao setor privado. Já tinham em cada circunscrição territorial pessoas que negociavam, com o serviço nacional de saúde e com os privados, onde colocar os pacientes, mas davam sempre deferência ao setor público. Contudo, desde 2012, a lei mudou e há uma negociação completamente livre com base na pura concorrência. Vi ontem no The Lancet - um dos mais respeitados jornais médicos mundiais -, um artigo notável e muito profundo de avaliação destes dez anos da mudança de política do serviço nacional de saúde inglês. Realmente, o artigo é demolidor para a perda de qualidade associada à privatização, é algo que não me passava pela cabeça.

Mas perda de qualidade no serviço público ou no serviço privado?
No serviço privado, nomeadamente com o aumento da mortalidade tratável. Aliás, não posso dizer que seja no serviço público ou no serviço privado. O método distribui os doentes de acordo com as regras do mercado, digamos assim. Há como que compradores de serviços ao setor privado em cada circunscrição, são conselhos de colocação clínica. Esse organismo distribui de acordo com o que há no mercado, onde há vagas, onde há o melhor preço, melhores condições e enviam os pacientes para esses locais. O que se verifica é que, nestes dez anos, houve um aumento da mortalidade tratável, ou seja, fazem a comparação entre o efeito da adjudicação da colocação do doente e o resultado desse trabalho no ano seguinte. É um estudo muito bem-feito, muito robusto e que me deixou muito surpreendido.

Tem suspeitas de que isso possa estar a acontecer cá?
Não tenho suspeitas, nem quero ter. O que acho é que é preciso que os nossos investigadores estudem isso. Porque os problemas da entrada do setor privado são exatamente iguais em Inglaterra e em Portugal. Ou seja, existe exatamente a mesma desnatação, os casos complexos são enviados para o setor público e os casos ligeiros para o setor privado. Existem exatamente as mesmas características que no nosso sistema e acho que era interessante estudar-se isso. Até lá, acho que ninguém tem direito de dizer que o privado é melhor que o público ou vice-versa, é preciso estudar.

O que está a acontecer neste momento, quer lhe chamemos caos, colapso ou nenhum dos dois, é ou não motivo suficiente para a Ministra da Saúde sair?

Por amor de Deus. Então, temos um governo de maioria absoluta que só governa há quatro meses e era agora, só porque há um fenómeno que aconteceria com qualquer governo e que não depende da Ministra da Saúde. Como é que ela poderia a tempo ter prevenido? Mais corretamente deveriam então criticar o Correia de Campos, o Luís Filipe Pereira, a Maria de Belém Roseira, a Manuela Arcanjo, a Ana Jorge e o dr. Paulo Macedo. Tudo isto é uma situação cumulativa.

António Costa tem condições para manter a ministra da Saúde no seu governo?
Acho que não se justifica [a saída], francamente. Compreendo que o desejo de sangue é extremamente interessante para toda a gente, desde logo para as oposições, que adoram ver sangue, e para os media também.

Mas não seria o melhor para a Saúde, é isso?

Não, neste momento acho francamente que não, e não concordo nada com essa solução. Posso admitir que a dra. Marta Temido esteja fatigada por dois anos brutais, de uma exigência física brutal - todos respeitamos o trabalho que fez o Ministério da Saúde. Posso admitir que precisasse de ganhar algum fôlego para recuperar o pensamento estratégico, mas há coisas que estão na calha. Há um regulamento novo do Serviço Nacional de Saúde, que espero que também corrija algumas das coisas que me parecem erradas na Lei de Bases. Portanto, há todo um caminho que está aberto e que também poderá melhorar a situação.

No seu tempo como ministro, quais foram os problemas que detetou na altura e que agora identifica na situação que estamos a viver?
Nessa altura, havia um problema comum que é o das contas certas. No meu tempo de governo tinha três prioridades: a primeira, reformar os cuidados de saúde primários, criando as unidades de saúde familiares, e isso foi conseguido. A segunda era criar os cuidados continuados integrados para idosos e dependentes, que também foi conseguido. A terceira era ter contas certas, equilibrar o orçamento, e consegui resolver as três. Devo dizer que esses três anos em que estive no governo, foi um dos escassos períodos de governação dos últimos 40 ou 50 anos, em que não houve orçamentos retificativos em Portugal. Não foi só por causa da Saúde, mas foi também por causa da Saúde. Quanto ao resto, fala por si. Nas unidades de saúde familiar não estamos com o programa completo, estamos a 45%, nos cuidados continuados a idosos também devemos estar à volta dos 50%. Mas este último é um problema que cresce porque, enquanto no primeiro a população carente de cuidados primários é basicamente a mesma, nos cuidados continuados temos uma população a engrossar ano após ano com o envelhecimento da população.

Na gestão dos profissionais também?
Eu tinha uma vantagem sobre a situação atual: tinha mais médicos, mas menos enfermeiros. Mas tínhamos, provavelmente, médicos a mais em muitos hospitais centrais e distritais e isso permitiu-nos, por exemplo, que o país fizesse aquilo que os estrangeiros admiram muito, que foi a regressão brutal da mortalidade infantil e materna. Conseguimos porque cada parto em Portugal, no SNS, passou a ter obrigatoriamente três profissionais médicos: obstetra, neonatalogista e anestesista. Os dois primeiros, pelo menos, eram absolutamente obrigatórios em todas as unidades de obstetrícia, mas no setor privado isso não acontece. Não acontece porque o setor privado não tem partos de risco e quando tem manda-os para a Alfredo da Costa. O setor privado tem a possibilidade de o médico que acompanha a gestante ser exatamente o mesmo que lhe faz o parto e no setor público isso nem sempre acontece. Normalmente, são os médicos de Medicina Geral e Familiar que acompanham e depois referem para a maternidade que a paciente escolhe. Não sei se sabem, mas desde há mais de 12 anos que as gestantes podem escolher o seu lugar de parto. O setor privado de obstetrícia é frequentado pela classe média-alta e alta, essas pessoas têm mais educação que a média dos portugueses, têm mais informação, melhor alimentação, vão mais vezes ao médico e é natural que cheguem ao parto e não tenham situações de risco. Certamente que os médicos dirão que as situações de risco aparecem a qualquer momento, mas nessa altura em que acontece uma situação de risco, há as maternidades públicas para onde mandam os partos de risco.

A segurança nos cuidados foi uma luta sua e, se a memória não me atraiçoa, na primeira década dos anos 2000 foi o ministro que ficou conhecido por fechar algumas urgências, maternidades e centros de saúde que não reuniam os requisitos de qualidade e segurança.

A situação que se vive atualmente no SNS e os exemplos dos últimos anos fazem acreditar que afinal tinha razão nesse tempo?
Claro que tinha razão, mas a situação atual não é de perda de qualidade. Voltando à obstetrícia: todos estamos a ferver numa água de um incidente que terá provocado a morte de um recém-nascido e que não se sabe ainda se se deve inteiramente ao facto de não existir, naquele momento e naquele hospital, toda a parafernália que há pouco descrevi. Há um inquérito em curso, mas vamos admitir que isso ocorreu, estamos a falar de uma situação que gerou toda esta preocupação. A preocupação é ilegítima? Obviamente que não, e todos os pais e mães querem as melhores condições, mas essas condições não estão garantidas na proximidade imediata, mas estão garantidas na proximidade. Por exemplo, no Algarve, temos duas maternidades com toda a qualidade e uma delas manifesta-se nalguns dias da semana incapaz de constituir as equipas que permitem acolher pessoas que não estão acompanhadas.

Na altura, o processo de encerramento da maternidade em Elvas que foi muito polémico e levou até a oposição a pedir a sua demissão. Acabou por fazer um protocolo com Espanha para que os bebés de Elvas nascessem a 12 quilómetros de casa, em Badajoz, mas com um protocolo de segurança. Considera que esta medida teve o efeito esperado à época e acha que pode ser repensada atualmente?
Claro que teve. Se é repensável ou não, não sei, porque não tenho os números, e não sei a frequência de gestantes em pré-parto no concelho de Elvas, mas com certeza que a decisão foi de segurança total. E mais, as posições que existiram na altura, com base em argumentos puramente demagógicos, de que as crianças iriam nascer em solo espanhol, era simples pura ignorância. Já havia, nessa altura, uma lei que permitia o direito à nacionalidade da mãe e, portanto, essas crianças que nascem em Badajoz são portuguesas desde que as mães também sejam.

Acabou por sair do governo. Acha que foi incompreendido com essas decisões?
Não, não fui nada incompreendido. Aliás, é muito fácil de explicar a minha saída do governo. Tinha-me comprometido com o primeiro-ministro José Sócrates a ficar dois anos, porque ia fazer tanta reforma forte que ao fim deste tempo estaria tão em brasa que teria de sair.

E nem o próprio PS estaria de acordo com algumas dessas reformas?
Provavelmente. Mas ao fim de dois anos, cheguei ao pé do primeiro-ministro e disse-lhe que, do ponto de vista legislativo, já tinha feito tudo o que queria e só faltava aguentar a parte da aplicação prática. Estava na altura de cumprirmos o combinado, mas pediu-me para ficar, fiquei e continuei no mesmo ritmo. Mas a certa altura, provavelmente por erros meus e por não ter sabido compensar com medidas positivas, quando pedi a demissão tinha uma lista de 60 serviços de urgência que iam abrir porque estavam em obras avançadas. Quando tive a conversa com o primeiro-ministro levei-lhe essa lista e a situação em que se encontravam as obras e, portanto, a minha saída foi totalmente voluntária e determinada por mim. Entendi que se havia um rumor tão grande quanto a mim, não tinha possibilidades de estar. Era o responsável pelo Serviço Nacional de Saúde e se as pessoas, ainda que sem fundamento, não tinham confiança em mim, naturalmente não podia continuar.

Já expressou uma posição otimista em relação à situação que vive o SNS. O governo tem teimado em afirmar que nunca tanto dinheiro foi colocado à disposição da Saúde. O dinheiro está a chegar, mas está a ser mal gerido?
Não, está a chegar em maus tempos. Nunca gostei muito dessas explicações de que temos mais médicos, mais enfermeiros ou mais dinheiro, não gosto e não percebo porque é que o governo as adotou. Não tenho nada a ver com a política do governo, admito que possa ser produtivo, mas não gosto dessas explicações. Aliás, nunca fiz anúncios antes das coisas estarem realizadas e vejo que os governos dos últimos anos anunciam sempre coisas antes de elas se realizarem. Isso não é boa política, isso não dá confiança aos portugueses, porque depois metade dessas coisas não se podem realizar, ainda que por razões perfeitamente legítimas e normais. Mas, voltando à questão do financiamento, nunca me queixei do financiamento da Saúde, porque, se vir os números quando se apura tudo, vê que o dinheiro é mais que suficiente. Só que é entregue como se fosse por um pai rico a filhos perdulários. O Ministério das Finanças não tem confiança no Ministério da Saúde e, por isso, substitui-se ao Ministério da Saúde. Quem gere a Saúde hoje, em Portugal, é o Ministério das Finanças.

E quem são os filhos?
Os filhos é o Ministério das Finanças e o serviço na sua dependência. Não é boa política isto de não confiar nos gestores, porque nem sempre foi assim. Durante os três anos em que fui ministro não foi assim, eles tinham o dinheiro quase todo desde o início e com isso aguentavam-se. Mas agora não lhes dão 90% desse dinheiro, dão-lhes 70% no início para ver se o ministério se contém dentro desses 70%. Isto é algo completamente absurdo e errado, porque o ministério tem despesas incompressíveis e se o gestor não tem conhecimento real do dinheiro que vai ter, acaba por se desinteressar da gestão. Se souber que só vou ter 70% desinteresso-me da gestão e depois não gasto 70%, nem 90%, nem 100%, gasto 110%. Tenho a certeza também de que o Ministro das Finanças, no fim do ano, vai rapar dinheiro não sei onde para pagar a diferença. Isto é profundamente deseducativo para a gestão, ainda por cima quando se atribuem subsídios de fim de ano e se pagam dívidas aos cumpridores e aos incumpridores. O que é preciso é mudar esta cultura e tentar um pouco aquilo que fiz - e claro que isso cansa muito as pessoas e é absolutamente fatigante -, mas fazia reuniões por região hospitalar com os conselhos de administração dos hospitais e eram reuniões duríssimas. Por vezes, sabia mais das contas dos hospitais do que eles próprios. Isto era andar em cima deles e acabaram por ser excelentes gestores. Isso foi o que nos permitiu poupar algum dinheiro e fazer, por exemplo, o cheque-dentista.

O facto de estar em curso um processo de descentralização que inclui a Saúde vai acrescentar dificuldades ou vai facilitar?
Devo dizer-lhe que durante a crise prestei uma pequeníssima ajuda a uma câmara dirigida por um amigo e fiquei a perceber a importância do apoio municipal para a Saúde. Quando o hospital da zona precisava de um pavilhão especial para atender os doentes com covid, o pavilhão foi pago, quando precisou de uma ressonância magnética, foi comprada, quando era preciso obras a câmara fazia. Quando foi preciso arranjar apartamentos para as pessoas que controlavam por telefone os casos, a câmara arranjou imediatamente. Já viu o que é esta riqueza e capacidade que os municípios têm de facilitar?

Pode ser uma gestão mais eficaz?
É evidente. É preciso ser realista e regulamentar tudo isto, mas esta solução de utilizar o apoio dos municípios é de extrema importância. Até porque, de forma muito alargada, a maior parte dos municípios vive mais folgadamente do que a administração central e, portanto, têm mais capacidade e mais flexibilidade para dar estes apoios. Por exemplo, nunca pensamos que a substituição da Sisa pudesse dar a receita que deu, que está a dar e que continuará a dar. Os municípios também tiveram muitas receitas adicionais e, aliás, a Sisa deve-se à dra. Manuela Ferreira Leite, que não é do meu partido, mas por quem tenho grande respeito e que foi visionária. Na altura, fiquei muito chocado com uma frase dela que foi algo como as câmaras ainda não terem dado conta do dinheiro que lhes estavam a meter nos cofres. Na altura, fiquei surpreendido porque achei que, com o novo imposto, fosse acontecer o mesmo que acontecia com a Sisa, isto é, corrupção, falsificações, aquela prática comum. Mas não, a verdade é que funciona.

Faz sentido afrontar o setor privado da Saúde como fez a ministra Marta Temido?
Não posso classificar esse comportamento como afrontamento.

Rompeu os contratos que existiam.

Ela diz que não, ela diz que as sociedades gestoras declinaram a continuidade das parcerias porque não lhes convinha os valores apresentados. Esta é verdadeiramente a situação, mas vamos à razão do problema. As parcerias público-privadas com gestão privada durante dez anos, mais que se justificam, mas ao fim de dez anos um SNS que não consegue encontrar uma gestão capaz para substituir em transição a gestão privada, também está a ficar abaixo daquilo que devia estar. Quando desenhei as parcerias, 30 anos para o investimento e dez para a gestão clínica, sempre admiti que ao fim de dez anos a experiência fizesse com que o SNS estivesse em condições de administrar esses hospitais. Acontece que parece que não está nas mesmas condições, por causa da gestão financeira do Estado, dessa centralização absurda, da incapacidade de atualizar os vencimentos. As pessoas foram-se embora, as administrações, provavelmente, não terão todas o mesmo nível de competência das anteriores, enfim, deviam aprender com os bons exemplos da gestão anterior. Aliás, em 2015, quando colaborei no programa do governo de então, estabeleceu-se o princípio de que as parcerias seriam avaliadas e que a decisão de prosseguir ou não, decorreria dessa avaliação. Há quem diga que as parcerias foram quase todas avaliadas positivamente para o setor privado, conheço alguns desses estudos, mas também há outras razões de queixa, porque também há novas patologias e novas terapêuticas. Cada um desses problemas é específico e não os conheço.

Não dá por adquirido que os privados gerem melhor que os públicos?
Não, não dou nada disso por adquirido. Há hospitais públicos mais bem geridos do que privados, o privado também tem desperdício, não julgue o contrário. Ao que parece, os privados comportaram-se muito bem na gestão das parcerias público-privadas, mas também porque eram os primeiros interessados nisso. As parcerias não são um negócio da China para os privados, a margem de lucro que tiram delas não é muita. Tem a ver com duas coisas: tem a ver com as economias de escala, ou seja, se um grupo já potente toma conta de uma parceria, compra medicamentos e serviços mais baratos, tem um papel no mercado de muita capacidade. Por outro lado, a outra razão é que todos os parceiros estavam altamente interessados em que as parcerias corressem bem e esmeraram-se. Se conseguirmos que os gestores públicos tenham o dinheiro suficiente no princípio do ano, haja quem ande em cima deles a monitorizar o seu desempenho pontualmente, com certeza que acabam por gerir bem. Não há nenhum defeito genético nos gestores públicos.

O que é que falta hoje ao SNS? É a independência na gestão?
Sim, esse é o problema mais importante que o SNS tem hoje. A incapacidade que os gestores têm de conhecerem os limites orçamentais e poderem gerir bem os seus recursos. Por outro lado, a existência de um emaranhado de filtros, que foram montados desde os tempos da troika, que retêm as nomeações de novo pessoal, mesmo que seja só pessoal de substituição. Este tipo de medidas que foram adotadas por razões que todos conhecemos, porque os ministros das Finanças não são conhecidos pelo SNS ser bom, são avaliados por aguentarem o défice. É preciso encontrar uma articulação entre as Finanças e a Saúde que permita que as Finanças confiem na Saúde. Tive a sorte de ter como ministro das Finanças um amigo e uma pessoa que, passados os primeiros tempos de incerteza, passou a confiar totalmente em nós e isso permitiu tudo. Quando verificou que as nossas contas eram iguais às dele, a relação foi absolutamente aberta.

A forma como o governo está a tentar resolver a situação, ou seja, com o aumento do valor da hora extraordinária e o valor-limite para os prestadores de serviço, é a correta de resolver a situação?
Isso são medidas de recurso, obviamente são medidas indispensáveis. Estamos numa situação apertada e é preciso encontrar essas soluções, mas não são soluções definitivas.

É um penso rápido?
É pouco mais que um penso rápido. Talvez tenha uma compressa um pouco mais forte, mas a verdade é que a solução está em dar aos hospitais maior independência e às unidades de gestão intermédia dos hospitais. São os famosos centros de responsabilidade integrada dentro dos hospitais, já há uns 30 ou 35 em vários países. Como sempre, o São João vai à frente, já tem uma dezena ou uma dúzia deles, e o São José tem sete. São unidades constituídas da mesma forma como se constituíram as unidades de saúde familiar, isto é, há um médico que é diretor de serviço, constitui uma equipa, ocupa um espaço e recorre a um determinado equipamento. Este médico recebe o salário correspondente de lei, mas também gere o cabimento em horas extraordinárias. Com esse dinheiro pode dispensar parte dos prestadores de serviço, vulgo tarefeiros, e também pode ficar com os recursos que o hospital gastaria se tivesse de fazer meios complementares de diagnóstico no exterior. Esses dinheiros são internalizados e esta unidade apresenta contas de seis em seis meses, são inspecionados regularmente e isso tem funcionado.

Estas empresas de prestação de serviços, há forma de acabar com isso?
Creio que não há e nem convém fixar limites de preço ou estar a distorcer o mercado. Acho que é uma ilusão. O melhor é deixar o mercado a funcionar. Mas o que é preciso é fazer com que os centros de responsabilidade integrada sejam capazes de ir recuperar esses médicos, ditos tarefeiros, e integrá-los no seu quadro. Isto é que é importante e é possível.

Na totalidade?
Não sei, aos poucos. Nada se faz na totalidade, não há nenhuma varinha mágica.

Ontem, os estudantes de medicina diziam que a responsabilidade de reter o talento em Portugal é do Estado e que este tem de pagar melhores salários. Concorda?
Claro que sim.

É preciso uma política de rendimentos diferentes para a Saúde?
Acho que sim, sempre defendi isso e seria idiota se negasse essa necessidade. É absolutamente essencial, mas se queremos ter um serviço público imbuído da universalidade, da solidariedade, da generalidade e da quase total gratuitidade, são valores que não existem no setor privado. O setor privado não é responsável por nada disto.

Daí as reservas quanto a uma dependência excessiva do setor privado?

Evidentemente. Acho que deve haver setor privado, até porque se não houvesse seria um desastre, e a verdade é que o SNS já aprendeu muito com o setor privado. O setor privado é muito importante, tem mais flexibilidade, vai à frente, ensaia modalidades importantes. Por exemplo, as compras em grupo que são comuns no setor privado, e eu só consegui, na altura, compras em grupo na ARS do norte porque era a que estava mais preparada. Não podemos acabar com o setor privado, não podemos não mencionar o setor privado ou colocá-lo entre paredes, temos de lembrar-nos que estamos num sistema de Saúde e não só no Serviço Nacional de Saúde.

Acha que tem havido excesso de ideologia na relação com o setor privado?
Com certeza. Quando tivemos um governo que dependia de uma maioria parlamentar em que a única tentativa de cimento para unir essa maioria era a ideologia da recuperação das "malfeitorias" anteriores. Essa relação acabou e não foi por culpa do principal partido. A vossa próxima pergunta certamente será se estou de acordo com a Lei de Bases de 2019 e direi: não gosto de mudar Lei de Bases todos os anos, mas não gosto da de 2019 porque acho que simplesmente esqueceu a existência de um sistema de saúde e de um setor privado e social. Acho que devia ter dado mais importância a isso e, mesmo assim, ainda foi precisa uma ajudinha do presidente da república para que as intenções mais devastadoras não se fizessem sentir nessa legislação.

Concorda com a existência de um diretor nacional para gerir o SNS como está previsto?
Concordo, mas acho que há um erro grave nessa proposta legislativa. É necessário ter um Executivo que seja forte e acho que quando a ministra se queixa que tudo lhe bate à porta, concordo totalmente com ela em relação a isso. Onde não estou de acordo com ela é quando ela quer manter a administração central do serviço de Saúde - isso é uma redundância completa. Acho que, das duas uma: ou se promove a administração central a direção executiva do SNS; ou então mantém-se, mas os dois a funcionar não pode ser. Ou se dá mais força à atual ACSS, ou então arranja-se outro.

Mas o que é que preferível, na sua opinião?
Preferível é ter um só. Já que gostamos de mudar nomes, chamemos-lhe direção executiva, não tenho nenhum problema a esse respeito, mas os dois é que não, de forma nenhuma. Se não ninguém se entende.