À porta de uma discoteca

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Numa recente noite de convívio com um casal amigo, vieram à baila as atribuladas primeiras férias “autónomas” do filho mais novo deles – o tradicional “ritual de libertação” com um grupo de amigos no Algarve. As marcas da aventura no rapaz eram demasiado visíveis para passarem despercebidas: um olho negro e uma ligadura num cotovelo denunciavam o impacto memorável destas primeiras férias “à solta”.

O relato dos feitos não é original: uma troca de olhares de lado numa discoteca, um empurrão para aqui, uma ameaça mais exaltada para ali e está o caldo entornado. No meu já longínquo tempo de adolescente, a maioria destas cenas ficava por aí, num quase saudável exercício hormonal que terminava sob ameaça de expulsão por parte dos seguranças do local. Hoje, as coisas quase nunca ficam por aí.

Felizmente para o filho desse casal (e para os outros envolvidos), o incidente acabou por não ter consequências mais graves do que essas marcas no corpo, mas os episódios relatados à mesa deixaram clara uma espiral de violência gratuita que poderia ter terminado de forma bem mais séria, após uma espera coletiva à saída da discoteca.

Numa sociedade cada vez mais intolerante ao outro, em que crescem a agressividade, o ódio, a violência, parece que se respira uma necessidade de eliminar quem ousa contrariar-nos. Quer se trate de um simples arrufo de discoteca ou do debate político. Essa pulsão para reagir com hostilidade ao simples facto de alguém estar "do outro lado" é um sintoma concreto de uma acelerada erosão democrática numa sociedade onde o “ou estás comigo ou estás contra mim” se generalizou como máxima tribal de pensamento e atuação.

Reparemos nas conclusões de um estudo publicado na revista Political Psychology - de que o jornal Expresso deu conta -, o qual revela que muitos eleitores portugueses (na verdade, o fenómeno parece-me global) relativizam direitos fundamentais consagrados, como o direito ao bom nome ou à presunção de inocência, quando os suspeitos de corrupção pertencem a partidos rivais - e, pelo contrário, os defendem quando se trata de gente do seu partido. O que devia ser inegociável passa a descartável dependendo do lado da barricada em que se está.

Estamos a abandonar a cidadania e a confiança nas instituições para abraçar uma lógica de gangue justiceiro, onde tudo é permitido para defender o nosso lado, mesmo que isso implique atropelar a lei ou ignorar princípios básicos de convivência democrática. Como num grupo de adolescentes à porta da discoteca, vale o empurrão, a ameaça, o ataque gratuito, porque o outro é visto como inimigo, não como “competidor” legítimo.

Essa mentalidade, alimentada por anos de polarização e discurso tóxico, é o terreno fértil dos populismos, onde não se exige justiça, só punição. Onde já não interessa compreender, apenas vencer a qualquer custo. Não nos admiremos que o país (ou o mundo) se pareça cada vez mais com uma luta à porta de uma discoteca.

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