WATANUKI Sensei. O mestre deixou-nos, ficou o seu sentir

1926-2021. Um século de vida para mostrar o talento artístico com que nasceu. Foi o tempo que Hirosuke Watanuki viveu de uma forma surpreendentemente leve, profunda, consistente, rápida e multidisciplinar como que a confirmar antes de tempo cinco dos seis paradigmas que Italo Calvino anunciou para o século XXI, antecipando a forma como o iríamos viver: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência (Six ideas for the next millenium, 1986). Na obra de Watanuki transparecem todos estes atributos, menos a visibilidade.

Watanuki veio para Portugal em 1957 e por acasos férteis entrou no mundo artístico português e frutificou de forma surpreendente. A sua obra mantém-se em coleções particulares e em pelo menos 14 museus de Portugal: Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado; Museu Nacional de Soares dos Reis; Museu Machado de Castro; Museu de Lisboa - Palácio Pimenta; Museu Municipal de Matosinhos; Fundação da Casa de Bragança; Fundação Calouste Gulbenkian; Museu da Golegã; Museu José Malhoa; Museu Municipal da Figueira da Foz; Museu Abade de Baçal; Museu da TAP e Fundação Passos Canavarro. Voltou para o Japão em 1966 e desapareceu da memória cultural portuguesa, confirmando-se que não investiu na visibilidade.

Apesar de pouco ter feito para entrar nas luzes da ribalta e fazer-se conhecer, não nos enganemos: na primeira exposição, Exhibition of Works of Contemporary Art Belonging to the Calouste Gulbenkian Foundation que a Gulbenkian levou ao Iraque, para dar a conhecer a sua ação no campo das artes, iam nomes muito sonantes: Paula Rego, Christo , Júlio Pomar, Carlos Botelho, Almada Negreiros, René Bertholo, João Abel Manta, Jorge Martins, António Sena, Jan Voss, Sarah Afonso, Eduardo Nery, Ângelo de Sousa e, com eles, Hirosuke Watanuki (uma peça em técnica mista com folha de prata e guache, panorama do porto de Lisboa, 1961).

Desde que o conheceu em Tóquio, através do grande japonólogo embaixador Armando Martins Janeira, Pedro Canavarro percebeu o seu valor artístico e humano e manteve a chama viva de uma amizade duradoura, mandou cartas, recebeu gravuras, visitou o Mestre, e na alcáçova de Santarém, no museu da Casa Passos Canavarro, expôs as obras de Watanuki e partilhou o Mestre japonês connosco. Isso permitiu, cinquenta anos mais tarde, fazer regressar Watanuki a Portugal, em 2017, já com 90 anos, e foi possível apreciar o que foi a pujança da sua criação em Portugal. Pedro Canavarro e a Fundação Inês de Castro juntaram peças de museus e coleções e a exposição Agora Mesmo esteve na Sociedade de Belas Artes e no Museu Machado de Castro, que a acolheram com entusiasmo.

Nesse julho em que se despediu do nosso país, a Embaixada do Japão distinguiu-o com uma homenagem e ele agradeceu em português. Falava correntemente a nossa língua e mal chegávamos começavam as histórias divertidas, o calão, as anedotas e a leveza de viver em amizade.

Desenhava com um traço limpo e seguro, esboços, letras e caracteres. Dizia que o tempo para ele já não contava, como se a sua idade lhe tivesse feito passar a barreira do tempo e agora estivesse livre para criar sempre que a inspiração lhe chegasse. Desconhecia as barreiras entre as diferentes artes e explicava a palavra "muhoan" por onde se espalha toda a sua obra. Muhoan foi o caminho de Watanuki, que com toda a liberdade foi passando da pintura à escultura, da caligrafia ao design de garrafas de vidro e kimonos, da poesia à arte dos jardins, da cerâmica à cerimónia do chá. Watanuki permeia estes campos artísticos como um peixe na água.

No processo criativo, Watanuki arrastava sempre a memória da arte em Portugal. No ryokan do Goshobo, uma pousada/spa, em Arima Onzen, onde veio a morrer neste 31 de janeiro, esculpiu numa pedra dos banhos quentes as palavras "amor, saúde, eternidade", em bom português, e convenceu os seus amigos, donos do hotel, a usar um logótipo para o hotel que diz: "Vive o presente e terás paz."

A mistura estética que envolve Watanuki parece feita da memória de Portugal e é tecida de um apego, uma relação afetiva tão recíproca quanto inesperada, tão "opósita quanto semelhante entre gente de duas nações tão longínquas", como dizia Luís Frois, o primeiro japonólogo europeu na sua História do Japão (ms. 1591). O sabor artístico com que Watanuki desenhou as nossas paisagens, cidades e igrejas nasce da atração pelas formas novas, o gosto em absorver para dentro de si pedaços do país novo, e numa efusão contínua em fazê-las chegar ao outro lado do mundo.
Surpreendente é também essa fusão no seu jardim em Kobe, onde a casinha do chá, a que chamava o retiro do cata-vento, é 100% japonesa tal como o jardim, com caminhos de pedras, quartzo e as plantas de lá; mas num dos lados tem grandes potes de barro portugueses, painéis de azulejos, peças esculpidas de pedra, trazidos de Portugal e que acompanhavam todos os dias a saudade que sempre sentia do nosso país.

Desde o início, Watanuki captou a linha e serviu-se dela como a sua melhor forma artística. Olhando Portugal, Watanuki desenhou-o mantendo uma linha criativa completamente japonesa e, por isso, tão inesperada para nós. Deste jogo de apreensão da matéria portuguesa a que se segue a produção artística japonesa nasce um traço que surpreendeu todos e justifica o sucesso de Watanuki no nosso país, nas palavras de Reis-Santos, na altura diretor do Museu Machado de Castro em Coimbra: "[...] Conquanto vivendo conscientemente alguns dos mais importantes problemas artísticos da atualidade, a sua obra não cede às solicitações da moda, nem responde, sequer, aos apelos de uma estética inconformista, radicalmente reformadora, mantém-se independente: não deixa de se revelar ele próprio, sem artifícios nem convenções. [...] só transmite os ecos do mundo exterior através das ressonâncias da sua alma."

Esta prolífera obra, que é reconhecida e famosa no Japão pela sua originalidade pela sua linha subtil e extraordinariamente densa, toca-nos a nós portugueses. De uma forma única, Watanuki desenha Lisboa, Coimbra ou Porto/Matosinhos com a mesma frescura, curiosidade e rigor com que os artistas da escola de Kano pintaram os famosos Biombos Nambam com o desembarque dos portugueses das naus que no século XVI chegavam aos portos do sul do Japão. Watanuki deixou-nos o registo dos anos de 1950 e 1960 em Portugal com tudo o que o fascinou no nosso país, os telhados, as cidades, os portos, a costa portuguesa, as fachadas das igrejas.

Neste ano de 2021, que celebra (em atraso de um ano) os 160 anos da amizade restabelecida entre o Japão e Portugal, Watanuki é um expoente daquilo que Portugal e o Japão podem expressar ao mundo. Uma longa e profunda amizade, uma fusão possível e muito rica entre o Oriente e o Ocidente.


Professora e arquiteta paisagista

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