Vermeer, hoje

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Soprou-me um anjo que, na Primavera do próximo ano, o Rijksmuseum de Amesterdão vai levar a cabo a maior exposição de sempre da obra de Johannes Vermeer, com quadros vindos de todo o mundo. Oportunidade única, irrepetível, para admirar a obra do mestre de Delft, o qual, sendo famoso no seu tempo (ao contrário do que muitos julgaram, como Proust), morreu cravejado de dívidas, caiu na obscuridade e só seria redescoberto em meados do século XIX, em larga medida por acção de um homem, o jornalista e crítico de arte francês Théophile Thoré-Bürger, que em 1866 notou e disse o essencial: a qualidade ímpar das pinturas de Vermeer, aquilo que as distingue de todas as outras, é a luz, uma luz que, em vez de se projectar sobre o quadro, a partir de fora, parece vinda do interior das próprias telas, num efeito que mais nenhum pintor conseguiu alcançar até hoje.

Anos depois, em 1902, um crítico e historiador de arte austríaco, Aloïs Riegl, acrescentaria outro dado relevante, esse comum à pintura holandesa do século XVII, que é o facto de ela visar ser uma "arte da interioridade", na qual as figuras dirigem a sua atenção (a Aufmerksamkeit) para o espectador, naquilo que Riegl considera ser "expressão mais subjectiva da vida interior". Graças a esta característica, e à luz que brota de dentro dos quadros, a pintura de Vermeer alcança um efeito extraordinário sobre os espectadores, transportados, implicados e quase se diria sequestrados e aprisionados no interior das telas e das cenas domésticas nelas retratadas. Sem nos apercebermos disso, passamos subitamente de voyeurs atrevidos a cúmplices involuntários da encenação peculiar daqueles pequenos dramas caseiros, como o da senhora que lê ou que escreve uma carta à janela, da criada que entrega à patroa a missiva do seu amante, da jovem que conversa com um soldado garboso, da rapariga que tange uma guitarra ou dedilha as teclas do seu virginal.

Em Vermeer ocorre, por outro lado, uma singular sugestão do invisível no visível como se os quadros contivessem muito mais coisas do que as que neles observamos. Estabelece-se também, como notou Daniel Arasse em L'Ambition de Vermeer, uma estranha intimidade entre espectador e figuras retratadas, a um tempo muito próximas e muito distantes de nós. Mais, ao contrário do que era comum noutros pintores holandeses da época, Vermeer elimina totalmente dos seus quadros a presença do mundo exterior, a qual só surge, uma vez mais, através da luz, da luminosidade coada pelas janelas, apenas isso. Nos interiores, ademais, são escassas ou quase nenhumas as personagens presentes, existindo no máximo uma ou outra "figura de intrusão" (serviçal, oficial galante), o que acentua a natureza introspectiva e subjectiva da personagem feminina central e a privacidade do conjunto, de onde estão ausentes a multidão e o ruído. Por isso já se disse, e com razão, que os seus quadros são profundamente reflexivos e neles tudo se processa de uma forma suavíssima, infinitamente delicada, extremamente silenciosa - além da luz que surge do interior, as obras de Vermeer surpreendem pelo silêncio e, se quisermos, pela cortesia e pela discrição, não sendo ao acaso que alguns especialistas têm notado que a pintura holandesa seiscentista é indissociável da difusão, feita naquela época nos Países Baixos, de manuais de civilidade italianos, como o de Stefano Guazzo ou de Baldassare Castiglione (traduzidos para flamengo em 1603 e em 1662, respectivamente), os quais, em nome de um ideal de elegância e de sprezzatura, enalteciam o respeito pela privacidade de cada qual e, em resultado disso, a necessidade de separar claramente o que deve ser mostrado e ocultado dos olhares alheios. Muito difundido nos meios burgueses a que Johannes Vermeer pertencia, este "modelo italiano" de convivialidade impôs uma dialéctica entre mundo interior e mundo exterior, esfera privada e pública, interioridade subjectiva e papéis sociais que, com o passar dos anos, fundou a noção de "eu" típica da Idade Moderna. No nosso tempo, com os totalitarismos do século XX, a crucial distinção entre público e privado tendeu a esbater-se, como salientou Hannah Arendt, fenómeno hoje agravado pelas redes sociais do Facebook, do Instagram e do Twitter, entre outras pragas.

Comungando daquele ideal de elegância e virtude, de finura e delicadeza, de introspecção e de respeito pela subjectividade alheia, a pintura de Vermeer é uma pintura do implícito, feita de pressentimentos e adivinhações, que sugere muito mais do que mostra e que se oculta a ela própria como pintura ou obra artística. Segundo uma tradição antiga, que remonta a Plínio, o Velho, a grande qualidade de uma pintura consiste em apagar as marcas e os vestígios do trabalho do pintor, as manifestações materiais da sua intervenção na tela (o relevo da tinta, os traços do pincel, os contornos), de modo que um quadro não pareça ser um quadro, que ele não seja óbvio como "obra" ou objecto produzido com propósitos artísticos, e antes remeta para outra dimensão, mais imaterial e difusa, espiritualmente mais densa, quase metafísica. Na técnica de Vermeer não há contornos nem linhas definidas, não há recortes claros de figuras nem de objectos, tudo é envolto numa neblina muito mais subtil do que o ​​​​​​sfumato leonardesco, como se não existisse pintor ou pintura, tão-só uma atmosfera evanescente, liquefeita, onde mergulhamos na dupla condição de espectadores e partícipes, circunstância adensada pelo facto de, na maioria das telas (20, num total de 35), o observador estar colocado numa posição de ligeiro contrapicado relativamente à figura representada.

A harmonia do conjunto é dada pela luz, também ela difusa e sem contrastes, baça, longe dos marcados claros-escuros típicos da "estética protestante" que celebrizou Rembrandt, a qual, através da oposição radical entre luz e negrume, procurava assinalar a inconciliável diferença entre o Céu e a Terra, o espiritual e o material. Vermeer converteu-se ao catolicismo ao casar-se com Catharina Bolnes em 1653, ou seja, antes de ser admitido como pintor na Guilda de São Lucas, de Delft, e antes de começar a assinar os seus quadros (a sua primeira obra datada, A Alcoviteira, é de 1656). Não sendo muitos os seus quadros declaradamente "religiosos" (Cristo na Casa de Marta e Maria, 1654-1655; Santa Prassede, de 1655; Alegoria da Fé, ou Alegoria da Fé Católica, de 1670-1672), mas a fé, ou a moral dela decorrente, está presente em quase todas as obras de Johannes Vermeer, impregnadas de um profundo moralismo, puritano e censório. A Alcoviteira, uma das suas primeiras obras, claramente inscrita na categoria "pinturas de bordel" (Bordeeltje), muito em voga na época, contém uma clara advertência, didáctica e moral, aos riscos de frequentar tabernas e estalagens de má fama e aos perigos em que incorrem todos os que não controlam os seus apetites sensuais. No quadro, vemos uma jovem com um copo de vidro na mão, de faces rosadas, fruto de embriaguez, enquanto um homem lhe dá uma moeda com uma mão e com a outra lhe aperta o seio. Atrás, vestida de negro e com ar malévolo, a velha alcoviteira que apadrinhou o negócio, vil e carnal. O tema da sedução de mulheres através da embriaguez está presente em mais obras de Vermeer, como Soldado e Rapariga Sorridente, de 1658, O Copo de Vinho, de 1658-1661, e Mulher e Dois Homens, de 1659-1660, e as virtudes da temperança são ainda enaltecidas em Jovem Adormecida à Mesa, de 1657, entre outros exemplos (em O Copo de Vinho e em Mulher e Dois Homens, chega-se ao ponto de representar, no vitral da janela, a figura da Temperança). Há muitas missivas, trocas de correspondência ardente (Rapariga Lendo Uma Carta à Janela, de 1657; Mulher de Azul Lendo Uma Carta, de 1662-1664; Senhora Escrevendo Uma Carta, de 1665-1679; A Senhora e a Criada, de 1667-1668; A Carta de Amor, de 1669-1670; Senhora Escrevendo Uma Carta e a Sua Criada, de 1670), mas muitos pormenores revelam que Vermeer desdenhava essa actividade epistolar, o mesmo se dizendo da vaidade feminina, verberada em obras como A Mulher do Colar de Pérolas, de 1664, A Mulher da Balança, de 1662-1664, ou Mulher com Jarro de Água, de 1664-1665.

Nas obras de Vermeer, encontramos muitos "quadros dentro de quadros", tapeçarias dobradas e desdobradas (num exercício que quase evoca as considerações de Deleuze sobre Leibniz e o barroco), mapas e representações cartográficas e cartas, muitas, trocadas entre esposos ou amantes. Apesar de ocuparem um lugar central na sua obra, as mulheres são encaradas como fonte de perigos ou de pecado, ponto já notado por diversos especialistas, os quais garantem que Vermeer (atitude comum à época) receava o sexo feminino, havendo mesmo quem considere que A Alcoviteira revela um "onanismo profundo" ou que A Leiteira é produto da insegurança do pintor relativamente à sua "sexualidade fálica". Concorde-se ou não, parece óbvio que, à maneira católica convencional, Vermeer figura as mulheres como seres perigosos, Evas melífluas, e em simultâneo criaturas frágeis, inocentemente expostas à sedução masculina. Em ambos os casos, e segundo os preconceitos e estereótipos desta visão, o drama do género feminino (o "sexo fraco", expressão sintomática) é estar escravizado por sensações, tiranizado por paixões arrebatadoras e pulsões irracionais.

Hoje já não se escrevem cartas, de amor ou outras, e o máximo que os amigos ou amantes podem esperar serão emails frios e lacónicos ou breves linhas num ecrã de telemóvel, pontuadas por emojis, que de forma padronizada e grosseira exprimem emoções de gosto ou desgosto, prazer ou de angústia. A "poesia do recolhimento" de Johannes Vermeer, como alguém lhe chamou, foi destruída pela diluição das fronteiras entre público e privado, pela apetência das celebridades em partilharem connosco os momentos íntimos dos seus quotidianos, como se nos interessasse conhecer o underwear de Ronaldo ou o petit-déjeuner de Georgina. Na peugada dos famosos e das "figuras públicas", os comuns mortais figuram-se também eles como celebridades, fazendo-se fotografar em selfies de despudorado onanismo, retratando os pratos que comem nas mesas dos restaurantes, compondo autobiografias risonhas em "histórias" do Instagram. Sem cair no moralismo sexista de Vermeer e do seu tempo, é fatal reconhecer que, por força da destruição dos limites da privacidade, as adolescentes de agora, elas muito mais do que eles, estão expostas a perigos novos: a universalização dos smartphones, a brutal expansão das redes sociais, a frenética troca de mensagens virtuais, muitas delas de conteúdo sexualmente explícito, fizeram explodir fenómenos como o sexting e o revenge porn, em que a inocente partilha de imagens íntimas dá lugar a chantagens, vinganças de toda a espécie, humilhações alarves que deixam sequelas psicológicas gravíssimas e, não raro, conduzem ao suicídio, como há pouco sucedeu com uma jovem egípcia de 17 anos, que se matou após ter sido alvo de severo bullying, ademais perpetrado com base em imagens e vídeos manipulados. Um estudo da JAMA Pediatrics, publicado em 2018, garantia que um quarto dos adolescentes usa a internet para partilhar conteúdos sexualmente explícitos e, segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a pandemia agravou a situação e são cada vez mais as pessoas que pedem auxílio devido a chantagens ou maus-tratos piores ainda. Um inquérito a 525 universitários portugueses, levado a cabo em 2020, concluiu, espantosamente, que mais de metade dos estudantes que enviaram nude selfies (i.e., auto-retratos de nus) não tinha percepção dos riscos; a APAV estima que 90% das pessoas não sabe pedir ajuda, facto tanto mais estranho quando tudo indicia que, na esmagadora maioria dos casos, as vítimas são jovens, pertencem à "geração mais qualificada de sempre". Vermeer, que nunca saiu de Delft e que era por certo um homem misógino e sexista, respeitava mais a privacidade alheia e a intimidade feminina do que muitos adolescentes do nosso tempo, que tanto se orgulham do seu cosmopolitismo e da sua sofisticação. É triste, mas verdade.

Historiador. Escreve segundo a antiga ortografia

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