Uma guerra inter-capitalista
Desconheço o estado de ânimo dos leitores, mas, pela parte que me cabe, não estou nada otimista, pelo contrário, em relação ao futuro próximo da humanidade. O conflito na Ucrânia é apenas uma manifestação e um sintoma de algo mais grave que pode estar em gestação: a destruição da ordem mundial tal como a conhecemos, se não mesmo da própria humanidade.
Os sinais indicam que os EUA, principal potência mundial e vencedora da guerra fria que opôs o referido país à extinta União Soviética durante décadas, acreditaram genuinamente que a História havia acabado. Porém, não acabou e, no início deste século, o mundo assistiu à emergência de uma possibilidade inédita: a criação de uma ordem multipolar, ao invés da ordem unipolar, estruturada em torno dos EUA e que parecia inevitável após a derrota da URSS e consequente extinção da ordem bipolar característica do período da guerra fria.
A China, com o seu sistema capitalista de partido único, assumia-se (assume-se) como o líder natural dessa provável nova ordem. Outras nações, todas elas capitalistas, tais como a Rússia, a Índia, o Brasil e a África do Sul, constituindo, juntamente com a China, o grupo designado Brics, reforçaram essa possibilidade. O Irão e outros países (Turquia?) têm igualmente condições de participar e reforçar essa dinâmica. Assumindo o seu natural papel de liderança, a China lançou o projeto das novas rotas da seda. De igual modo, ampliou a sua cooperação com a União Europeia, em especial países como a Alemanha.
Desde a primeira administração Obama, pelo menos, os Estados Unidos acusaram o toque. Ele chegou mesmo a definir o Pacífico a prioridade estratégica do país em termos de geopolítica, o que levou certos líderes europeus a verbalizarem o seu receio de serem "abandonados". Trump pareceu dar razão, momentaneamente, a esses receios, pois, durante o seu mandato, não deu a mínima para a Europa. Mas Biden, uma vez eleito, sossegou o velho continente: "America is back", disse ele. Isso não impediu, entretanto, os EUA de declararem oficialmente a China como o seu "inimigo estratégico" principal. Essa definição foi igualmente assumida pela OTAN.
Está a ocorrer, por conseguinte, um confronto declarado entre a (ainda) principal potência imperial e os seus potenciais concorrentes, com a China à cabeça. Duas notas importantes: a primeira é que não se trata de um confronto entre dois modelos económicos diferentes, tal como aconteceu no período da guerra fria, pois, agora, a China, a Rússia e os seus aliados são assumidamente capitalistas; a segunda é que tentar justificar esse confronto com uma alegada "batalha pela democracia" é, no mínimo, esquizofrénico, uma vez que as alianças estratégicas dos EUA com várias ditaduras em todo o mundo ao longo da História, até ao presente (vide Arábia Saudita, mas não só) são conhecidas de todos. É um conflito pelo domínio global do mundo. Ponto.
O mais dramático é que não se trata de um conflito pacífico. A guerra na Ucrânia faz parte dessa disputa mais ampla pelo domínio global do mundo a que me refiro. Não tenho dúvidas: do ponto de vista da principal potência imperial, trata-se de destruir ou pelo menos fragilizar a Rússia, para que o alvo principal dos EUA (a China) não possa contar com o eventual apoio do aparato militar russo, em caso de necessidade. Essa estratégia está a ser levada a cabo simultaneamente com outras iniciativas de natureza militar no Pacífico, envolvendo dois aliados importantes dos Estados Unidos: o Reino Unido e a Austrália.
Quais as consequências deste confronto para as demais regiões do planeta? Como podem os restantes países reagir à atual dinâmica belicosa e militarista, a que alguns já chamam a III Guerra Mundial? Falarei disso no próximo artigo.
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21