Jacques Delors foi lembrado há dias por Pascal Lamy em mais uma das Novas Conferências do Casino, iniciativa do Círculo Eça de Queiroz, Grémio Literário e Centro Nacional de Cultura. "A união dos europeus será construída por crises e pela forma como formos capazes de lidar com elas". O antigo presidente da Comissão Europeia deixou então claro que, longe de facilidades, importa assumir na Europa a coragem de fazer das instituições entidades mediadoras capazes de construir a paz, a democracia e o desenvolvimento, não como abstrações, mas como instâncias que possam ser eficazes e apresentar resultados..Neste momento atravessamos a maior crise quanto à integração económica e política desde o fim da Grande Guerra. "A invasão russa da Ucrânia abriu uma ferida na União Europeia", colocando os principais atores do Velho Continente num dos lados de uma guerra, ainda que de forma indireta. Estamos assim diante de um teste de fogo do qual resultará ou o fortalecimento ou o enfraquecimento de um projeto que se deseja comum. Numa primeira apreciação, a guerra parece ter revelado união e empenhamento. Mas persistem as fragilidades e as ameaças externas, evidenciadas pelo aquecimento global, pelas migrações, pela pandemia e pela guerra..A emergência da guerra e as suas consequências, imprevisíveis quanto à sua evolução, apresentam virtualidades que devem ser aproveitadas, na coordenação política e no tocante à transição energética, impulsionada pela crise do gás, obrigando a maior audácia, no sentido da inversão de tendência quanto à perda de relevância da Europa no contexto económico e estratégico. Há, porém, um longo percurso a seguir e importa romper com o atraso europeu. A Europa tem de ter voz e influência na mediação da paz, respeitando a Carta das Nações Unidas e o Estado de Direito, com um modus vivendi que integre a Rússia e que permita reconstruir a Ucrânia, no centro e leste do continente, envolvendo complexas questões financeiras, energéticas e de defesa. Tudo isto obriga a uma atenção especial à relação com a China e a Índia, sendo prioritária a cooperação para o desenvolvimento com o hemisfério sul, em especial com África..Timothy Garton Ash em Pátrias - Uma História Pessoal da Europa (Temas e Debates, 2023), notável análise da circunstância que atravessamos, recorda que Renan afirmava que uma nação é um grupo de pessoas unidas por uma memória comum e por um esquecimento comum e que os historiadores podem ser perigosos porque forçam as pessoas a recordar aquilo que querem esquecer. Contudo, os historiadores são necessários porque denunciam as mentiras que a cada passo envenenam o mundo. Alguém lembra a Guerra da Crimeia ou que a capital da Prússia, a cidade de Kant, é hoje uma cidade fora da História?.Importa dizer que perderemos a Europa se nada fizermos. Não podemos continuar a acreditar em que tudo vai correr bem, apesar da preguiça e da complacência. O aquecimento global poderá aumentar nos próximos 10 anos cerca de 1,5 graus acima dos níveis pré-industriais e haverá um hiato económico norte-sul, de que resulta uma pressão migratória sem precedentes. Se em 1989 o contexto internacional era favorável, agora é problemático. Mas o multilateralismo, se for levado a sério, beneficiará todos, uma vez que os diversos poderes tenderão a equilibrar-se. A História dos próximos 50 anos dependerá, assim, do modo como a Europa responder aos diversos desafios e às várias crises, perante as quais se encontra..Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian