Um país refém de uma profecia autorrealizável
Tirando o facto de, desta vez, ser exatamente como sempre foi, necessitando de negociações sérias, para que o orçamento seja o compromisso possível entre diferentes formas de ver o país, tirando isso, desta vez, é diferente. Tão diferente que as fontes dos jornalistas estão sempre a dizer-lhes que "desta vez, é diferente".
Desta vez, o governo não pergunta aos seus parceiros de esquerda o que pretendem para aprovar o orçamento, dizem as fontes mais à esquerda. Desta vez, os parceiros não se contentam com um orçamento de esquerda, queixam-se as fontes do governo. Desta vez, os que não perguntam não obtêm respostas e os que não batem à porta não encontram do outro lado ninguém que a abra.
É tão inverosímil esta ideia de que, desta vez, o orçamento pode ser chumbado, que se estranha a facilidade com que ela é aceite como sendo o cenário mais provável. Quem poderia estar interessado em eleições que acabariam por deixar tudo pior do que está? Se o governo tem margem para negociar a introdução de algumas medidas exigidas pelo PCP ou pelo Bloco como essenciais, por que razão não o faria? Se o governo mostrar essa disponibilidade, por que razão os parceiros da geringonça não estariam disponíveis para viabilizar o orçamento
Entramos numa zona pantanosa, em que já ninguém sabe como sair. Quanto mais vezes o governo repete que já deu muito à esquerda e a esquerda repete que o governo não lhe dá o que ela quer, mais parece igual a nada tudo o que o Executivo ceder. E também sabemos que muitas das medidas que o governo apresenta como cedências à esquerda são medidas já negociadas e anunciadas em orçamentos anteriores.
Pode tudo isto ser explicado apenas por cansaço? Não parece. Há claramente uma encenação em curso que servirá ou para tornar mais cara a viabilização do orçamento ou para atribuir culpas em caso de crise política. Quem já se livrou dessa responsabilidade foi a direita, dispensada pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República da obrigação de defender o melhor para o país, no pressuposto de que ter este orçamento aprovado será o melhor para o país, como argumentam Costa e Marcelo.
Dispensada a direita, e tendo a esquerda a faca e o queijo na mão, é completamente irracional, do ponto de vista partidário, que a esquerda queira ir a votos sabendo que que acabará responsabilizada nas urnas. Estamos claramente a mudar de ciclo político e o que se estranha é esta vertigem que parece estar a levar a esquerda a dar o tal passo em frente, mesmo sabendo que está num equilíbrio muito frágil na berma do precipício. Tanto insistem que acabarão por fazer exatamente o que dizem não desejar, cria-se uma expectativa que, mesmo podendo ser falsa, conduz ao comportamento que a torna verdadeira. Pobre país!
P.S. Poderia haver coisa mais ridícula que uma descida de dois cêntimos no ISP, anunciada na sexta-feira, ser comida por uma subida igual no preço dos combustíveis, anunciada para hoje? E se lhe acrescentarmos a quantidade de vezes que o governo argumentou que descer o ISP era um erro, porque coloca em causa o combate às alterações climáticas, o que pode isto significar? Fica-se com a sensação de que chegaram àquele momento em que, quanto mais se tentam salvar, mais se afundam.
Jornalista