Um Conceito em banho-maria: Perspetivas de Defesa Nacional adiadas

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A análise ao relatório do antigo presidente finlandês Sauli Niinistö, as dúvidas sobre a nova administração americana e os 1000 dias de invasão russa da Ucrânia relembra-nos que Portugal atravessa um hiato público, académico e institucional sobre o exercício de atualização do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), com exceção de pontuais artigos de opinião.


A 31 de janeiro de 2023, um grupo de investigadores, diplomatas, responsáveis das forças e serviços de segurança nacionais entregaram à Ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, um relatório com as linhas orientadoras sobre o novo CEDN, cumprindo a revisão feita a cada decénio.


Em maio do mesmo ano, a Ministra da Defesa Nacional entregou na Assembleia da República (AR) uma resolução que pretendia a aprovação da “Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional”. Como é sabido, as dinâmicas da democracia ditaram a dissolução da AR e esse ato anulou todos os documentos legislativos sob apreciação parlamentar.


A construção e atualização do CEDN é um processo demorado, sem previsão de duração formal, que pressupõe uma avaliação combinada do ambiente geopolítico com a realidade nacional, bem como extensas consultas para a ponderação de capacidades, identificação de interesses, mapeamento de vantagens competitivas e estratégicas, inventariação de fragilidades e definição de oportunidades.


Esse trabalho está concluído e torna-se essencial eliminar o vazio teórico e atualizar o CEDN com orientações claras sobre uma mão cheia de questões.


Como garantir a segurança dos cidadãos, território e instituições, sem esquecer as infraestruturas-críticas, perante desafios energéticos, económicos, climáticos, cibernéticos e os que emergem no domínio marítimo?


Como pode Portugal dar um salto qualitativo na harmonia entre política externa e de defesa, enquanto reforça a reputação de parceiro de estabilidade nas Nações Unidas, na União Europeia, na NATO e na CPLP?


Como valorizar e modernizar as capacidades das forças armadas e serviços de segurança à luz de 2024, de forma a cumprir as obrigações de 2% de investimento, onde se incluem novos sistemas de defesa, melhorias nas condições remuneratórias do efetivo, um alargamento da base tecnológica de defesa, uma abordagem à inteligência artificial e um robustecimento da interoperabilidade de meios?


Como reforçar a cultura de segurança nacional nos cidadãos e promover a abordagem nas escolas, o fomento da discussão académica e envolver a economia para criar valor e emprego qualificado?


Ou, num desafio mais atual para o nosso quadro atlântico e europeu, como reagir à diplomacia transacional da nova administração norte-americana e à hipótese de a Europa ficar mais isolada na defesa da Ucrânia?

Dirão os pragmáticos que a ausência de um documento concreto não impede a salvaguarda da continuidade de todos estes interesses e objetivos nacionais. É um facto.


Então porquê essa necessidade?


Para prosseguir a conversa, reforça-se a resposta: além do estímulo ao desenho, execução e avaliação das políticas públicas nesta área, Portugal promove uma síntese que adapta a defesa nacional às complexas transformações do contexto geoestratégico, fundamentando a ação do governo, da diplomacia, da fileira militar e das forças e serviços de segurança.


Essas transformações são, por exemplo, a emergência das ameaças híbridas, os conflitos no Médio Oriente e na Ucrânia, a instabilidade em África, nomeadamente em Moçambique e as repercussões para a segurança nacional que daí podem advir, o momento de transição energética, a corrida às matérias-primas estratégicas, a competitividade nas tarifas entre China, UE e EUA e, por último, o espaço. Tudo isto merece uma reflexão, uma vez que o CEDN de 2013 se encontra ultrapassado.


Em complemento, ao plasmar as prioridades, referenciais de defesa e interesses estratégicos num único documento chancelado pelo Conselho de Ministros e pela Assembleia da República, Portugal alinha a coerência entre a teoria e a prática no plano nacional, bilateral e multilateral. Sobretudo, cria um instrumento de diplomacia pública para transmitir aos aliados, parceiros e competidores uma imagem de confiança, previsibilidade e solidez de objetivos.


Este é um comportamento que dá seguimento a uma característica fundamental da nossa estratégia externa: Portugal defende as suas opções e interesses com clareza, sem posturas impositivas, com fundamentação estratégica, foco nos resultados e sem hostilização.


Importa frisar que a publicação destes documentos no séc. XXI mantém relevância porque servem enquanto ferramentas de comunicação oficial, que garantem uma visão abrangente, coesa e politicamente validada, mas, sobretudo, representam um referencial comum que alimenta a atuação dos atores diplomáticos, de segurança e defesa e da economia.


Seremos tão mais reconhecidos como parceiros de confiança quanto mais previsíveis forem as intenções, compromissos e objetivos que defendemos.


Embora o imediatismo e volatilidade dos tempos não seja amigo de documentos de largo fôlego e longa projeção, os desafios do presente exigem um regresso ao debate, à ponderação e à identificação de grandes linhas estratégicas.


Chegados a este momento, e perante a nova configuração da Assembleia da República, importa não desperdiçar um trabalho de 2 anos, promover uma cirúrgica atualização à luz do último ano e devolver o documento ao Parlamento para concluir este tema.


Ainda vamos a tempo.

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