Um cisne na 5.ª Avenida

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O destino e a sua força: às vezes, muitas vezes, nem nos damos conta de que tudo quanto existe no mundo - inclusive nós próprios, o nosso nascimento - é produto de sorte pura e de acaso fortuito. Muitas coisas que temos por adquiridas poderiam não ter acontecido e outras tantas aconteceram quando tudo militava para que não acontecessem.

Na história de hoje, um filme. O argumento baseava-se numa novela que muitos diziam não ser adaptável ao cinema, a actriz desejada não queria por nada aceitar o papel, a censura quase ia destruindo o essencial da história, os estúdios por pouco não deram cabo de uma peça fundamental, a banda sonora, e o realizador não sabia como acabar a obra, tendo feito dois finais alternativos, diametralmente opostos.

Se os astros pareciam conspirar para que o filme não surgisse, conjugaram-se outras estrelas para um final feliz. A escritora Colette, por exemplo, foi uma fada madrinha decisiva, mas o mais fascinante é que nunca se apercebeu do papel que teve e, aliás, morreu anos antes de o filme ser rodado. Foi ao seu apartamento no Palais Royal que, um dia, Jean Cocteau levou um jovem escritor americano com cara de anjo, a quem a velha dama colocou um enigma desafiador. Depois do chá, colocou à sua frente um pisa-papéis de cristal, com uma rosa branca dentro, e perguntou-lhe o que lhe sugeria aquilo. O escritor angélico deu uma resposta desconcertante, de alta perversidade: "Rapariguinhas novas com vestidos de comunhão." Desvanecida, Colette ofereceu-lhe o objecto, que ele guardou como um talismã. Pela vida fora, tornar-se-ia coleccionador de pisa-papéis de cristal, mas aquele, o da rosa branca, seria sempre o favorito, que levava para onde quer que fosse.

Talvez ele tenha visto em Colette a mãe que nunca teve e com quem sonhou até morrer.
É estranho e terrível pensar que as últimas palavras terrenas de Truman Garcia Capote foram "Mama, Mama", mesmo sabendo que a mãe, quando estava grávida dele, tentou fazer um aborto clandestino e que, durante a sua infância, o abandonava durante largas semanas, meses a fio, para se envolver em sucessivas aventuras com homens que, julgava ela, lhe trariam a fortuna e o status social que obsessivamente buscava. Com antecedentes destes, é mesmo um prodígio do destino - mais um - que Capote se tenha feito escritor afamado e vedeta do jet set e até, note-se, que tenha sequer nascido e visto a luz do mundo.

A crer nos seus biógrafos, como Gerald Clarke, o rendez-vous com Colette, na Paris de 1948 (onde Capote também conheceu Dior, aureolado pela moda do new look, lançada o ano anterior), não teve, contudo, importância idêntica à de outro encontro da escritora, três anos depois, quando repousava no faustoso Hotel de Paris, em Monte Carlo, a convite do príncipe Rainier. Ao tentar entrar na sala de jantar do hotel, disseram-lhe que se encontrava fechada, decorriam filmagens de uma comédia ligeira, Monte Carlo Baby. Furiosa, Colette ficou a observar o movimento dos actores. O seu olhar fixou-se numa jovenzinha de aparência ingénua e formas esguias, pouco perfeitas, que desempenhava um papel menor. Num instante, a epifania: encontrara a actriz que afanosamente procurava para a adaptação teatral na Broadway de Gigi, o seu livro mais famoso. Assim nasceu uma estrela.

Para a história do nosso tempo, para o modo como vemos a moda (e entendemos o estilo e o glamour), teve importância revolucionária, transcendente, um memorando de breves linhas, injustamente esquecido. Foi enviado por Frank Caffey, manager de produção da Paramount, a Russell Holman, advogado dos estúdios em Nova Iorque. Nesse documento seminal, listava-se o guarda-roupa para Sabrina que Audrey deveria comprar em Paris, o qual resultara de longas conversações da actriz com Billy Wilder e a sua mulher, e com Edith Head, a lendária estilista de Hollywood 35 vezes nomeada para o Óscar. Com a ajuda de Gladys de Segonzac, mulher do chefe da Paramount em Paris, Audrey deveria comprar as roupas em seu nome, sem jamais mencionar o estúdio, para que este não fosse obrigado a identificar o costureiro nos créditos do filme. Tendo vestido Marlene Dietrich em Pânico nos Bastidores, de Hitchcock, Christian Dior não foi considerado apropriado e Cristóbal Balenciaga, o nome escolhido, alegou não ter tempo para fitas. Acabaram por ir parar ao ateliê de um jovem gigante, discípulo de Schiaparelli e de Balenciaga. Com 1,98 m, os amigos chamavam-lhe le grand Hubert e, quando abriu a porta da loja, Hubert de Givenchy ficou surpreso, pois julgava que era outra Hepburn, Katharine, quem queria falar com ele. Resistiu como pôde, mas, além de ficar amigo de Audrey para a vida (ele tinha 26 anos, ela 24), acabou por desenhar um guarda-roupa extraordinário para Sabrina e, mais tarde, para Breakfast at Tiffany's, adaptação da novela homónima de Capote cuja protagonista, Holly Golightly, é uma acompanhante de luxo que acaba as madrugadas a contemplar a montra da célebre joalharia da 5.ª Avenida.

Audrey Hepburn era perfeita para encarná-la, pois, com o seu ar de corça assustada, situava-se a meio caminho entre os dois ideais femininos da época: a esposa convencional, protagonizada por Doris Day, e a bomba sexual voluptuosa, corporizada por Marilyn. Audrey era jovem e fresquíssima, elegante, sofisticada, graciosa no andar e nos gestos, fruto da sua formação de bailarina clássica, mas não tinha um look fogoso e sexualmente agressivo, requisito fundamental para que o filme passasse o apertado crivo da censura.

Contudo, mesmo coberta por um diáfano manto de eufemismos e não-ditos, Holly era uma prostituta, uma "boneca de luxo" (o abominável título português do filme), e em 5th Avenue, 5. a.m., Audrey Hepburn and the making of Breakfast at Tiffany's o historiador de cinema Sam Wasson descreve ao pormenor as canseiras que os produtores tiveram para persuadir Audrey - e o marido, o tirânico Mel Ferrer - a aceitar o papel, que Truman queria atribuir a Marilyn, com ele, claro, como protagonista masculino (chegou a pensar-se também em Shirley MacLaine e em Jane Fonda). No filme, o máximo que sabemos é que Holly tinha inúmeros pretendentes, a quem cobrava 50 dólares "para ir ao toilette". Em contraste, o protagonista masculino, um escritor em crise, encarnado por George Peppard, vive às descaradas à conta de uma socialite e, ao contrário do que sucede na novela de Capote, não tem a mínima inclinação gay.

A história é ligeira, com personagens patetas (o vizinho japonês, encarnado por Mickey Rooney; o pretendente brasileiro, José da Silva Pereira, interpretado pelo aristocrata espanhol José Luis de Villalonga), mas a música inesquecível. O compositor Henry Mancini passou um mês inteiro a tentar atinar com o som certo, sem sucesso, mas, depois, em 20 minutos, escreveu de um jacto a balada Moon River (inicialmente chamada Blue River), que Holly, numa cena memorável, toca melancolicamente à viola, nas traseiras de casa. Audrey não queria cantá-la, tinha medo de desafinar, mas o realizador, Blake Edwards, conseguiu convencê-la, milagrosamente. Terminado o filme, os estúdios quiseram eliminar Moon River, imagine-se, mas valeu a teimosia de actriz, que, numa reunião em Hollywood, se ergueu da cadeira e afirmou que só por cima do seu cadáver.

Especulou-se muito sobre quem terá inspirado Capote na concepção de Holly, já que esta era de uma sofisticação inusitada para uma rapariguinha provinciana vinda de Tulip, Texas. A personagem será um compósito das socialites nova-iorquinas amigas do escritor, a quem este chamava "cisnes da 5.ª Avenida": Oona O'Neill Chaplin, Gloria Vanderbilt, Carol Marcus, Gloria Guinness e, sobretudo, Babe Paley, a infeliz mulher do multimilionário Bill Paley, fundador da CBS. Anos depois, Capote dirá que Holly se baseava numa refugiada alemã de guerra, lindíssima, que conhecera em Manhattan, nos anos 1940, e que, após uma passagem meteórica por Nova Iorque, fugira para a África portuguesa, onde desapareceu para sempre. Com ele, no entanto, nunca se sabia onde morava a verdade.

Mais do que identificar Holly Golightly, o importante é perceber o seu impacto para a geração das mulheres do pós-guerra, que se casaram novas (na América de 1951, mais de um terço das raparigas de 19 anos já estavam casadas), que regressaram ao lar após terem trabalhado fora de casa no esforço bélico, que em Audrey e na sua personagem encontraram um modelo de requinte e gosto e, sobretudo, um padrão de conduta menos rígido e austero. Holly, a "gueixa americana", como lhe chamaram, tinha largado o marido e a família no Texas para perseguir o seu sonho de vida em Manhattan, onde acumulava ligações fortuitas, fazia pequenos furtos nas lojas e mentia descaradamente. Vestia de preto, uma cor até então conotada com mulheres de maus princípios (Bette Davis em Tudo sobre Eva, Gloria Swanson em O Crepúsculo dos Deuses ou Rita Hayworth em Gilda), e o seu visual, hoje considerado "icónico", favoreceu a democratização de um estilo reservado às classes altas, tornando o chic acessível a todos. Além de optarem pelo rosa e pelo azul, pelo floral garrido, as mães de família deviam obediência total aos maridos e às convenções instaladas, machistas e opressoras. Holly Golightly era o contrário de tudo isso - e ainda bem.

Estreado em 1961, o filme continha uma importante lição moral e humana: o facto de alguém ser imperfeito e cometer os seus pecadilhos não significa que tenha de ser condenado e apedrejado até à morte. Lançada em tempos de Guerra Fria e de caça às bruxas, numa época em que as mulheres viviam dilaceradas por um ideal de perfeição absoluta como esposas, como mães e donas de casa, a mensagem de tolerância de Breakfast at Tiffany's foi mais importante do que hoje julgamos, sobretudo tratando-se de uma comédia ligeira e despretensiosa, sem ambições intelectuais ou artísticas.

E, no fim, um gato. Melhor, 12 gatos, tantos os usados para as filmagens em que um felídeo felpudo, a quem Holly nem dera nome (chamava-lhe cat, tão-só), assume papel central. A Paramount insistiu na importância do bicho e, quando o grande Robert McGinnis desenhou o cartaz publicitário, hoje mítico, mandaram que ao gato fosse dado o devido destaque, ao lado de uma Audrey de longa boquilha e colar de pérolas, com um vestido negro que mostrava ousadamente as suas pernas. O gato representava o lado mais terreno da diva etérea, conferia um toque de fofura e mimo à personagem de uma escort amoral. Era, no fim de contas, a arma secreta para suavizar a película aos olhos dos censores e do público mais severo. Não admira, pois, que o filme termine com o gato, que mia - à chuva.

Para a Rita Nunes, uma grande cineasta.

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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