Trump, o inconsequente?
É o grande dilema de todo cronista ou comentador: sabendo que o dever de informar obriga a um disclaimer sempre que o nome do presidente norte-americano é mencionado, que adjectivo usar? Louco? Contraditório? Ignorante? Grotesco? Inconsequente?
Entretanto, a “Besta apocalíptica” vai somando resultados, dificultando a vida à maioria dos profissionais da informação: a sua irritação, com recurso à F** word, levou iranianos e israelitas a parar os fogos cruzados? Vamos ver quanto tempo dura “a paz” e um requiem pelo polimento retórico dos grandes estadistas e dos pequenos e médios políticos sistémicos. Em Haia, os europeus estiveram em peso para o saudar, com destaque para o Secretário-Geral Mark Rutte? Reportagem sobre as vítimas da prepotência autocrática do “patrão americano”. Nos Estados Unidos o Supremo Tribunal deu-lhe razão quanto à tentativa de tribunais menores porem em causa as decisões do Executivo? Lamentemos o fim da Democracia na América. Para a maioria dos americanos o conflito de interesses é entre Wall Street e Main Street e Trump é por Main Street, tal como eles? Fake news das redes sociais. Trump tem uma visão geopolítica, um plano geoestratégico? Impossível, toda a gente sabe que age por instinto e em proveito próprio.
E no entanto, há uma estratégia e uma visão. Há o fim das cruzadas ideológicas nas relações entre os Estados, o fim de expedições ocidentais como as que ditaram a segunda guerra do Iraque ou a guerra da Líbia, para derrubar ditaduras e instalar a democracia liberal. As grandes potências - Estados Unidos, China, Índia, Rússia - e até as médias - Turquia, Israel, Brasil - devem entender-se e negociar a paz baseadas nos seus interesses nacionais, na Realpolitik, deixando os maniqueísmos ideológicos da retórica internacionalista para a Assembleia Geral da ONU.
Escrevendo sobre o que para a maioria dos que nos informam é uma inexistência (a saber, “A Grande Estratégia de Trump”), Arthur Herman veio recentemente lembrar, no National Interest, a doutrina de Lord John Fisher sobre as “chaves” dos mares, então pontos vitais para o Império Britânico: os Estreitos de Dover e de Gibraltar, na Europa, o canal do Suez, no Médio Oriente, o Estreito de Singapura, entre a Índia e o Mar da China, e o Cabo da Boa Esperança, no Atlântico Sul.
Hoje, um grande poder como os Estados Unidos, que é essencialmente um poder marítimo, tem de pensar nos pontos nevrálgicos do comércio marítimo (80% do comércio mundial). E esses pontos continuam a ser os estreitos e canais que ligam os grandes oceanos - ou são-no especialmente agora, com a liberdade de navegação e a China como challenger do poder americano.
Com as rivalidades intraeuropeias diluídas na perda de importância dos protagonistas, os pontos-chave são o Canal do Panamá, o Canal do Suez e o Estreito de Bab-el-Mandeb, a passagem para a Índia do Mar Vermelho. Vem depois o Estreito de Malaca, ligando o Índico ao mar do Sul da China, e, finalmente, no Ártico, a chamada Northern Sea Route, que algum degelo vai tornando mais frequentada.
A Administração Trump nunca deixou de estar atenta a esta geopolítica marítima: conseguiu debilitar as posições chinesas nas empresas detentoras da exploração do canal do Panamá; neutralizou as posições dos Hutis para fecharem o Mar Vermelho; e tem vindo a confrontar, de forma pacífica, a presença chinesa no mar do Sul da China. A Passagem de Noroeste “explica” a saga da Gronelândia.
Talvez o homem não seja assim tão inconsequente. Mas os comentadores e especialistas é que sabem.
Politólogo e escritor
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia