Trump e a realidade orçamental dos EUA

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A discussão em torno da decisão de Donald Trump de deixar cair a proteção incondicional dos aliados europeus, pelo menos parcialmente (sendo que, nestas coisas, não se pode fazer pela metade, pois uma aliança só é efetiva se não existirem dúvidas sobre a sua existência), foi alvo das mais variadas interpretações. Mas, por entre o choque dos aliados, que se dizem traídos, e dos discursos mais ou menos ideológicos, um aspeto tem ficado esquecido, que é o da realidade orçamental dos EUA.

De forma muito resumida, retóricas à parte, a Administração Trump está a tentar reduzir o gigantesco défice orçamental e a enorme dívida (124% do PIB), que colocam em causa, a prazo, a credibilidade do dólar como moeda de reserva internacional. Tal como lembrou ontem o próprio Elon Musk, numa intervenção em que fundamentou os cortes que o DOGE está a realizar, os juros da dívida americana já custam mais de um bilião de dólares por ano, um valor superior a todo o orçamento da Defesa. Isto deve-se, em grande parte, aos gastos para manter uma extensa rede de bases militares espalhadas pelo mundo, para além de armamento nuclear que custa mais de 50 mil milhões de dólares por ano. A título de exemplo, se o programa de armas nucleares dos EUA fosse um país, teria o nono orçamento militar em todo o mundo, acima do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália e de Israel.

Trata-se de uma situação que não é sustentável a vários níveis, nomeadamente no plano orçamental mas também político, porque o eleitorado americano está cansado de guerras no estrangeiro (pagas pelos pobres com sangue, impostos, inflação e serviços públicos de má qualidade) e a vitória esmagadora que concedeu a Trump nas últimas eleições não deixa dúvidas disso. Mais tarde ou mais cedo, esta política de “hiperpotência” e de expansão contínua da influência americana e da NATO, que remonta aos anos de Clinton, teria de ser revertida, mesmo que o inquilino da Casa Branca fosse um democrata com sólidas credenciais internacionalistas.

Daí a proposta que Trump fez à Rússia e à China, há poucas semanas, para um acordo que permita às três potências cortarem os respetivos orçamentos militares para metade. O acordo de paz na Ucrânia, que Trump está a negociar, visa também contribuir para este objetivo (sendo igualmente aplaudido pela Rússia, que após três anos de guerra estará exausta do ponto de vista económico).

Neste contexto, ao tentar obrigar os europeus a investirem mais na Defesa, Donald Trump procura reduzir os gastos militares dos EUA e direcioná-los para a Ásia, para conter a ascensão da China. A aproximação à Rússia será, também, uma forma de desmontar o poderio chinês na Eurásia, num movimento equivalente ao que Nixon fez em 1972, quando quebrou o isolamento internacional da China maoista, de forma a minar, de forma irremediável, o poderio da URSS.

A lógica é simples, mas quiçá certeira: quem controla a Eurásia domina o mundo. Para a potência marítima dominante, que atualmente são os EUA, a estratégia natural passará sempre por impedir que as grandes potências continentais se unam, sejam elas a China e a Rússia, ou a Alemanha (leia-se, a União Europeia) e a Rússia. E Trump sabe que, para os chineses, os Estados Unidos são um concorrente, ou um rival na pior hipótese. Já a Rússia será, potencialmente, um inimigo existencial, porque lhe disputa território.

Porém, esta estratégia pode facilmente virar-se contra Washington. O guarda-chuva nuclear americano e a proteção que os EUA deram durante décadas aos aliados tiveram também como objetivo impedir que países como o Japão e a Alemanha investissem nas suas próprias armas nucleares. O novo chanceler da Alemanha, por exemplo, já deixou claro que o país vai garantir a sua “independência” face aos EUA.

Por outro lado, a União Europeia tem uma economia quase tão grande como a dos EUA e dispõe dos recursos necessários para se tornar um rival estratégico, se conseguir manter-se unida e, sobretudo, se nos próximos anos se entender com a Rússia (que também sabe jogar este jogo) e voltar a receber gás natural e outras matérias-primas a baixo custo. Como escreveu Paul Krugman, com a sua lógica isolacionista e transacional, Trump pode ter despertado uma superpotência adormecida, com consequências difíceis de prever (partindo do princípio de que a União sobrevive após o fim da Pax Americana, mas isso é outra discussão).

Por fim, o domínio do dólar, essencial para a manutenção da hegemonia americana, poderá ficar em risco se os EUA seguirem uma via isolacionista e deixarem de garantir a segurança de outros países. É um novo mundo que está a chegar e Portugal tem de estar preparado.

Diretor do Diário de Notícias

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