Já por aqui citei Nelson Rodrigues antes, mas não me levarão a mal os leitores que volte a recorrer às palavras do antigo escritor e dramaturgo brasileiro, mestre na denúncia da hipocrisia social com a mesma elegância e contundência de Muhammad Ali num ringue de boxe. Volto em particular a uma das suas maiores paixões, o futebol (e o seu clube Fluminense), que motivou uma das suas citações mais célebres. No final de um intenso FlaxFlu, a rivalidade das rivalidades no futebol carioca, o cronista que gostava de transformar qualquer jogo da bola numa tragédia shakespeariana não recuou na sua visão distorcida dos acontecimentos nem perante as evidências das imagens, que denunciavam um penálti contra o seu Fluminense: “Se o vídeo mostra que é penálti, pior para o vídeo. O vídeo é burro”.Recordei esta frase a propósito da recente decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a chamada Lei dos Estrangeiros e das reações que se lhe seguiram por aqueles que vão tendo cada vez mais dificuldade em conviver com algumas das elementares regras da democracia, como aquela que garante a separação e independência dos poderes. E porquê? Porque a citação de Nelson Rodrigues sobre esse FlaxFlu assume perfeitamente o fenómeno da cegueira ideológica que hoje alastra bem para além do futebol: seja na política ou na justiça, a verdade factual e a argumentação jurídica perdem terreno para a lógica tribal de claque.O veto, decidido democraticamente à justa entre os 13 juízes (7-6), gerou reações que, mais do que analisar fundamentos constitucionais, discutem sim quem “ganhou” e quem “perdeu” com a mesma argumentação jurídica presente em qualquer discussão de café sobre o penálti do jogo do dia: se é contra a minha equipa é “um roubo”; se é a favor é “sem espinhas”, pois claro.Sucederam-se os clamores inflamados de que se trata de uma decisão “política” ditada por “juízes de esquerda” e a solução é, naturalmente, na lógica democrática de claque, mudar rapidamente a composição do TC para inverter o resultado no futuro. Se o juiz está contra nós, mude-se o juiz. Tal como, adaptando ao futebol de hoje, se o VAR mostra que é penálti ou fora-de-jogo, quem está errado é o VAR.O discurso não é novo nem exclusivamente português, como sabemos. Faz parte dos ventos ideológicos em curso, numa espécie de “O Rei manda” que se vai replicando um pouco por todo o lado, com críticas abertas à Justiça como “força de bloqueio” às derivas políticas mais populistas e a nomeação desavergonhada de juízes “à la carte”, enfraquecendo a separação de poderes e contribuindo para a crescente erosão da perceção de neutralidade das instituições.Não nos deixemos enganar: não ouvimos ninguém discutir aspetos técnicos sobre o Tribunal Constitucional, as suas competências, critérios de nomeação, duração de mandatos, reforço de mecanismos de transparência e independência ou modelos de escrutínio. Não. É mesmo só uma questão de “nós” contra “eles”.Editor-executivo adjunto