Regularidade e excecionalidade na decisão pública

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A falta de previsão dos efeitos e da capacidade de resposta de serviços públicos, após novas opções legislativas, é um dos nossos defeitos crónicos. Seja pela ideia de que, magicamente, tudo se altera pela simples mudança de lei, seja pelo desejo de que uma nossa proverbial capacidade de ajustamento resolverá todo e qualquer problema, é francamente difícil conseguir, no tempo adequado, evitar-se a cisão entre decisão política e alteração legal e, no outro extremo, a capacidade administrativa de as implementar de forma adequada.

A realidade vivida nos processos administrativos da responsabilidade da AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo ou, mais recentemente, do IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana são um bom exemplo disso. A imprevisibilidade ou, pelo menos, a desvalorização da pressão sobre o funcionamento de serviços criada por opções do legislador resulta em incapacidade de cumprir tempos devidos e procedimentos e no decaimento, muitas vezes francamente injusto, da posição do utilizador desses serviços. Se muitas vezes as Administrações já podem ter dificuldade em lidar com a regularidade, então perante a excecionalidade da realidade ou a mudança extrema no contexto legal isso é ainda mais acentuado.

Do ponto de vista da legística, está-se perante falhas na perspectiva da avaliação legislativa prévia, na deteção de efeitos perversos de alterações legais ou na falta de ponderação de alternativas a meras intervenções legais para a obtenção de resultados de uma forma mais eficiente.

Bons exemplos disto são também a falta de previsibilidade quanto a recursos necessários e a oscilação radical de incentivos e modelos para o recrutamento ou retenção de pessoas, em ciclos muito curtos. Os recursos humanos na área da saúde ou da educação são um bom espelho disso, até por serem sistemas de enorme dimensão, que exigiriam deveres de planeamento e previsão francamente mais consequentes do que aquilo que aparentam ser. Em poucos anos já se viu quase tudo, desde posições de entidades públicas – da Ordem dos Médicos, por exemplo – alertando para o excesso de médicos e de formação clínica em Portugal até à incapacidade no SNS de se recrutar os recursos humanos mínimos para permitir a abertura de um serviço de saúde. A ciclotimia na decisão pública não é boa conselheira. E, pior, a desvalorização do estudo da realidade ou dos efeitos que nesta se queira provocar. É conhecido, por exemplo, o efeito demolidor na regularidade e qualidade do serviço prestado que as ausências causam, especialmente em certas áreas mais sensíveis. Ausências, leiam-se, faltas ao trabalho, justificadas ou não. Nalgumas áreas da Administração, como na área da Saúde, na Educação ou nos Serviços Prisionais, pelo seu volume, este efeito é especialmente sentido. Esta é uma realidade conhecida há muito, mas que eventualmente não tem sido ponderada com a intensidade devida nas políticas para estes setores. É um trade off pouco feliz: a troco do seu “esquecimento” na decisão pública, compra-se provavelmente alguma paz laboral com os profissionais em causa, mas nem por isso se obtém um melhor resultado para os utilizadores, presentes ou futuros.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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