Recordar 1755: porque a nossa maior falha é de memória

A memória é uma estrutura antissísmica que ainda não aprendemos a construir.
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Portugal tem uma estranha facilidade em esquecer o que devia recordar. Há quem lhe chame amnésia; talvez seja apenas um modo de não se incomodar. O certo é que esquecemos tudo o que exige esforço: ideias, promessas e, sobretudo, lições. Entre as quais, a mais instrutiva de todas — a do Grande Terramoto de Lisboa de 1 de novembro de 1755.

Há 270 anos, Lisboa ruiu e com ela desabou um modo de pensar o mundo. Diversos pensadores e escritores europeus detiveram-se sobre o desastre de Lisboa, que rapidamente se tornou tema de reflexão em toda a Europa. O Terramoto de 1755 foi, nesse sentido, mais do que uma catástrofe: funcionou como um acelerador do pensamento europeu. As suas ondas sísmicas propagaram-se muito para lá de Lisboa — sacudiram consciências, alimentaram o debate científico e ajudaram a redefinir a forma como a Europa, e depois o mundo, pensariam a relação entre razão, fé e natureza.
Mas, curiosamente, quanto mais o mundo aprendeu com Lisboa, mais Lisboa parece ter esquecido o que o mundo aprendeu.

Hoje, o 1 de novembro é apenas mais um feriado. Nas lojas vendem-se máscaras e abóboras de importação, enquanto a maior catástrofe natural da nossa história passa despercebida. É curioso: lembramos as pequenas superstições, mas esquecemos a tragédia que nos devia ensinar a estar mais bem preparados. Talvez porque é mais confortável rir dos sustos do que pensar neles.

Lembrar o terramoto é um exercício de maturidade — e isso, convenhamos, nunca foi o nosso desporto favorito. Preferimos a inocência das certezas à exigência da consciência. Fazemos o que o país sempre fez: confiamos na sorte, como se o mal fosse algo que só aos outros acontecesse; como se os males do mundo fossem apenas coisas dos noticiários de TV.

O sociólogo Maurice Halbwachs escreveu que a memória coletiva não é uma simples gravação do passado, mas uma reconstrução contínua, moldada pelas convenções sociais e pelos valores da população no presente. Não se transmite como uma herança; cultiva-se como um hábito. Ora, Portugal nunca fez desse hábito uma prioridade. Não é distração, é um modo de estar: substituímos a recordação pela saudade — e a saudade, por definição, é um sentimento que olha para trás, enche-nos o coração, mas ensina-nos pouco.

Movimento Recordar 1755 nasceu para inverter esta lógica e devolver significado a uma data que o país tratou como rodapé. Não propõe solenidades nem discursos infindáveis em cerimónias oficiais. Propõe gestos simples: na noite de 31 para 1 de novembro, os monumentos serão iluminados de roxo; às 9h40 — a hora em que Lisboa tremeu — os bombeiros de todo o país farão soar as sirenes, e cada cidadão, nesse mesmo dia, é convidado a colocar à janela uma peça de roupa da mesma cor. Um gesto discreto, mas de forte comprometimento — um lembrete de que precisamos de uma memória coletiva menos seletiva e mais consciente.

Não se trata de nostalgia. Trata-se de lucidez. Recordar 1755 é aceitar que a memória é uma forma de prevenção. Um país que não se lembra do que o fez tremer não saberá preparar-se para o que vem a seguir. E o próximo grande sismo, ao contrário do passado, não precisa de nos apanhar de surpresa. O terramoto de 1755 foi mais do que uma tragédia: foi um momento de claridade. Fez-nos perceber que a força humana está menos na reconstrução das casas do que na reconstrução do pensamento. E talvez seja isso que hoje nos falta — uma memória que não sirva apenas para lamentar, mas para orientar.

Por isso, neste 1 de novembro, o convite é simples.
Não é para rezar, nem para temer.
É para Recordar 1755.

Pendure uma peça de roupa roxa à janela.
Não vale por fé, nem por patriotismo.
Vale por consciência.

Porque o esquecimento é a verdadeira falha — e a memória, essa, sim, é uma estrutura antissísmica que está ao nosso alcance construir.

Fundador do Quake – Museu do Terramoto de Lisboa

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