Recordação de José Rodrigues Miguéis, entre Lisboa e Bruxelas

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A literatura portuguesa do século XX anterior ao 25 de Abril é pouco conhecida e foi relegada para o arquivo do realismo, sem mais trâmites. As traduções são poucas e, mesmo em Portugal, parece pertencer a um passado que só interessa a eruditos e nostálgicos. Os catálogos, etiquetas e classificações da crítica literária às vezes apostam mal e enterram mais do que descobrem.

Assim, José Rodrigues Miguéis (1901-1978) foi negligenciado, quiçá porque viveu numa época entre Eça de Queiroz (que morre um ano antes do seu nascimento) e os neorrealistas mais conhecidos, como Fernando Namora, Alves Redol ou Vitorino Nemésio. Foi vítima da "temporalidade" dos gostos e da crítica. Viveu grande parte da sua vida em Nova Iorque e esteve afastado de todos os cenáculos e ambientes literários portugueses, embora colaborasse com o grupo literário da Seara Nova. Pagou a ausência, como a pagaria também outro exilado ilustre, Jorge de Sena.

A sua novela mais emblemática, O Milagre segundo Salomé, só pôde ser publicada depois da Revolução de Abril. O fio condutor é a história um tanto utópica da pobre Dores dos Santos que se torna meretriz por necessidade, sob o nome de Salomé, sendo depois amante de um rico comerciante e, finalmente, redimida graças ao jornalista Gabriel Arcanjo (um "arcanjo", nesse jogo de palavras e apelidos que Miguéis domina na perfeição, uma personagem em que talvez ele se retrate a si mesmo). É uma novela alheia às vanguardas literárias, um relato quase de género, num estilo que me faz recordar Theodor Fontane.

Talvez o que tenha indignado a censura puritana de então seja a versão jocosa e irreverente das aparições de Fátima, bem como dos numerosos negócios que se fariam à custa desse novo centro de peregrinação. Era esse afã, como diz o empresário e novo-rico Zambujeira, de "republicanizar o fenómeno religioso", aliando especuladores e eclesiásticos. Fátima foi efetivamente um grande negócio social (contra o bolchevismo), económico (hotéis, construção, turismo) e político (como uma espécie de sebastianismo).

Obra prismática onde aparece o fundo histórico do primeiro quartel do século XX português, tão convulso e rico em acontecimentos e tão fértil em alguns aspetos. Nesses anos houve atentados (assassinato do rei D. Carlos em 1908 e proclamação da República em 1910), revoluções, guerra na Flandres, greves, tentativas de golpes militares até 1926 em que tudo conduz a uma encenação do fracasso e a implantação da ditadura nacional, que daria lugar ao Estado Novo. Mas, ao mesmo tempo, foram tempos férteis na cultura e na arte. Por exemplo, na arquitetura e na medicina houve avanços consideráveis e muito positivos.

José Rodrigues Miguéis era filho de um imigrante galego, como tantos lisboetas da velha Baixa de armazéns e pensões. Fala-nos das suas origens, das vidas difíceis na Lisboa da Ribeira Velha, de Alfama e Mouraria da viragem do século, descreve-nos as suas ruas por onde andou desde criança. "À luz do gás a Baixa era triste e espectral. Davam horas na Sé, gigante insone e vigilante sobre a quietação dos velhos bairros..."

A sua escrita ágil, rica, está cheia de vocábulos e expressões muito lisboetas, muitos deles já quase em desuso. As suas descrições da cidade, em minha opinião, não foram superadas. Realistas mas líricas, coloridas, em que se pode quase apreciar o ambiente cálido das tardes de calma, de neblina ou de sol, conforme os dias, sobre o Tejo. A sua obra é, em grande medida, a pintura do século XX da capital portuguesa, portuária, mercantil e saloia. Não é uma escrita proletária nem realismo mágico, mas consegue fazer-nos penetrar na atmosfera da cidade. Por isso, o seu estilo, a sua personalidade, deixaram perplexos os novos críticos. De facto, creio que há 40 anos que nada se escreve sobre ele.

Outro livro com graça e humor é Nikalai, Nikalai, uma paródia ao ambiente de um grupo de russos brancos em Bruxelas em 1930, que querem restaurar o trono do czar, situação que Miguéis conheceu em primeira mão, pois viveu em Bruxelas antes da Segunda Guerra Mundial. A Bélgica aparece também noutros relatos como em Léah e Outras Histórias, e na novela Uma Aventura Inquietante. Não deixa de ser significativo que o escritor se tenha inspirado em duas das cidades mais melancólicas da Europa.

Os que percorremos Alfama, onde nasceu, não deixaremos de apreciar e de nos recrearmos com a sua A Escola do Paraíso, onde o realismo da vida quotidiana e o lirismo estabelecem um belo equilíbrio. Também os seus artigos jornalísticos são de uma lucidez surpreendente e, como amostra, leiamos "Sua majestade o automóvel" (1970!) e muitos outros denunciando a destruição de edifícios que ornamentavam a cidade que tanto amou apesar da distância. Faço minhas as suas palavras:

"O quadro é exatamente o mais próprio para nele se edificar um mundo à parte, duradoiro como um sonho e como ele vago se quiserem, mas tangível, com vida e personalidade. É Lisboa, uma realidade em si, e será preciso tê-la conhecido e vivido nela para bem a compreender e amar."

Muitos dos seus livros foram editados pela soberba casa Estúdios Cor, hoje extinta, bem encadernados, com boa tipografia e capas de bom gosto. Hoje só podemos procurá-los nas estantes dos alfarrabistas ainda que, como ele mesmo dizia de Camões, Rodrigues Miguéis não seja do passado, é de sempre, como a própria Lisboa.

Nós, os amantes deste escritor, formamos um pequeno círculo que haveria que estender a Espanha onde, que eu saiba, não foi traduzido, apesar de ter sido um grande conhecedor da história e da literatura espanholas e de nos fazer "uma distante sugestão da Galiza oprimida".

Advogado e escritor espanhol

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