Quando o retrocesso se disfarça de liberdade de escolha

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A Ministra do Trabalho afirmou, sem qualquer pudor, que “nem todas as pessoas querem ter um contrato de trabalho sem termo”. Disse-o como se fosse uma evidência. Como se estivesse a fazer uma constatação sociológica. Mas não apresentou um único dado, uma estatística, um estudo que sustentasse a afirmação. Disse-o porque pode. Porque esta maioria de direita acha que pode dizer tudo, até o que não faz sentido nenhum.

É isto que o país está a começar a perceber: temos um Governo que legisla com base em preconceitos ideológicos, governa com base em lugares-comuns e toma decisões estruturais sem ter em conta os impactos na vida das pessoas reais, as que trabalham, as que criam filhos, as que precisam de estabilidade para planear a sua vida.

•⁠ ⁠Precariedade com selo do Governo

A frase da ministra é apenas o sintoma de uma doutrina que se começa a enraizar neste governo: normalizar a precariedade como se fosse um estilo de vida. Passar a ideia de que os trabalhadores não querem estabilidade porque isso os torna “menos flexíveis”. E, com isso, abrir caminho para que se tornem descartáveis.

Mas a realidade é outra. Quem tem contratos a prazo ou recibos verdes fá-lo quase sempre por necessidade, não por vontade. Quem trabalha sem garantias fá-lo porque não tem alternativa, não porque não deseja estabilidade. Fingir o contrário é não perceber o país. Ou pior: perceber muito bem e querer que continue assim.

•⁠ ⁠Ataque disfarçado aos direitos das mulheres

Mais chocante ainda é o anúncio de alterações aos direitos de acompanhamento da criança. Essa medida, usada maioritariamente pelas mães, é fundamental para equilibrar vida profissional e familiar. Reduzi-la é penalizar quem já está mais exposto à discriminação no mundo do trabalho. É mais um retrocesso com marca da direita.

•⁠ ⁠Direita sem visão, esquerda com memória e responsabilidade

É nestas declarações que se nota a diferença entre projetos políticos. À esquerda, com o Partido Socialista, o país avançou com a Agenda do Trabalho Digno, reforçaram-se os direitos laborais, combateu-se o abuso dos contratos a prazo, apostou-se na valorização dos salários e nas condições de quem trabalha.

À direita, em poucos meses, já se começa a preparar o caminho inverso: desregulação, enfraquecimento dos direitos, retórica de responsabilização individual para esconder a ausência de respostas coletivas.

O Governo não tem projeto para o trabalho, nem para a conciliação entre trabalho e família. O que tem é um manual ideológico de flexibilização e chantagem sobre os trabalhadores. Não é uma visão de futuro. É uma herança da velha direita, atualizada com um discurso mais leve, mas com os mesmos objetivos de sempre.

•⁠ ⁠É tempo de dizer basta

Este país não pode aceitar que, em nome de uma suposta modernidade, se destrua o que foi conquistado com décadas de luta e diálogo. A estabilidade no trabalho não é um luxo, é um direito. E a conciliação entre a vida familiar e profissional é uma condição para a igualdade de género. Defender isso não é ser conservador. É ser responsável.

Portugal merece mais. Merece políticas com base na evidência, na justiça social e no respeito por quem trabalha.

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