Putin e os frágeis herdeiros de Gengis Khan
Na época em que cresceu Temudjin, o futuro Gengis Khan, choveu como nunca na Mongólia. O resultado foram prados verdejantes, ideais para criar muitos cavalos. E, como se sabe, foram os seus pequenos cavalos ultrarresistentes, juntamente com um tipo de arco capaz de disparar setas mortíferas a grande distância, que tornaram os mongóis temíveis guerreiros, capazes de conquistar a China, a Rússia, a Pérsia e até acabar com o califado abássida, tudo isto durante o século XIII.
Peter Frankopan, o historiador britânico famoso pelo seu As Novas Rotas da Seda, foi quem me contou sobre o papel do clima na ascensão do Império Mongol, que ia da Hungria à Coreia, dando também créditos, claro, à liderança de Gengis Khan.
Nunca houve um império terrestre contíguo tão grande como o Mongol. O Império Romano na sua máxima extensão ficava muito aquém. O Otomano, que veio depois, também. Só o Império Britânico, na viragem do século XIX para o XX, foi maior, mas espalhava-se por vários continentes, um conjunto de territórios dispersos desde o Canadá à Austrália, passando pela Índia.
A Mongólia, hoje, é quase só o coração do império construído por Gengis Khan, os filhos e os netos, como Kublai Khan, que fundou uma dinastia na China. Mesmo assim, são 1,5 milhões de km2, o 18.º maior país do mundo, um pouco mais pequeno do que o Irão, um pouco maior do que o Peru. Mas se os iranianos são 90 milhões e os peruanos 35 milhões, os mongóis são pouco mais de três milhões. Isto, claro, dentro das fronteiras da República, não contando com os seis milhões que vivem na China (onde são uma das 56 etnias reconhecidas) e o meio milhão na Rússia.
Comecei por dizer que os mongóis no tempo de Gengis Khan eram guerreiros temíveis. Muitos dirão que eram, isso sim, terríveis. Cidades inteiras foram arrasadas por terem ousado resistir às hordas mongóis. Máquinas de cerco, manobradas por gente dos povos conquistados, vieram juntar-se à cavalaria destes nómadas da estepe como armas de guerra. Mas aos mongóis devemos também uma era de grande atividade comercial entre a Europa e a Ásia, essa Pax Mongolica que permitiu a Marco Polo conhecer o Cataio.
Há um episódio da História Mongol que fascina os historiadores: no livro Gengis Khan e a Criação do Mundo Moderno, o antropólogo americano Jack Weatherford conta como um enviado do rei de França, o monge franciscano Guilherme de Rubruck, assistiu, há 800 anos, à celebração do Natal pela família de Mongke Khan, outro neto de Gengis Khan. Mais fascinante ainda, os mongóis, que seguiam o tengrismo, organizaram um concurso em que Rubruck teve de discutir doutrinas com budistas e muçulmanos. Temíveis, terríveis, mas também admiráveis, pois, estes mongóis.
E continuam admiráveis no século XXI, basta olhar para o bastião democrático em que transformaram o seu país, depois da desagregação da União Soviética, que tendia a vê-lo como uma espécie de 16.ª República. Nestas três últimas décadas, tem havido eleições livres e alternância no poder, e, no mapa de cores do Índice de Democracia da Economist,o azul mongol destaca-se do vermelho da Rússia e da China, os seus dois vizinhos gigantes.
Para se perceber a situação geopolítica da Mongólia é importante ter em conta ser este um país sem acesso ao mar e com uma fronteira de mais de 3000 quilómetros com a Rússia e de mais de 4000 quilómetros com a China. Com ambos os vizinhos a relação histórica é estreita, mas com a Rússia ainda mais no último século. Foi com apoio dos bolcheviques que a Mongólia consolidou a sua independência em 1921, uma década depois de ter aproveitado a queda da Dinastia Qing para se emancipar da China. Soviéticos e mongóis também lutaram juntos contra os japoneses, numa batalha há 85 anos, cuja celebração foi uma das razões da visita de Vladimir Putin a Ulan Bator esta semana. A viagem do presidente russo expôs a Mongólia a forte pressão internacional, pois o país é membro do Tribunal Penal Internacional e era esperado que detivesse quem, como Putin, é alvo de um mandado de captura, relacionado com a invasão da Ucrânia. Mas desde o primeiro momento se percebeu que o líder russo não se sentia ameaçado, usando até esta ida à Mongólia, onde foi recebido com todas as honras, para desafiar quem na comunidade internacional o quer ver isolado.
A determinação dos mongóis em serem uma democracia e terem uma boa relação com o Ocidente não significa que ignorem os seus interesses imediatos, como, por exemplo, a dependência energética em relação à Rússia. A sua tradição diplomática é de neutralidade e na ONU têm-se abstido de condenar a invasão russa da Ucrânia. A prova de que isso não afetou a democracia interna foram os protestos na capital contra a visita de Putin, até com exibição de bandeiras ucranianas.
A pressão sobre a Mongólia, sobretudo da União Europeia, para prender Putin foi, portanto, um exercício destinado desde o início ao fracasso. Legalmente, tinha razão de ser, mas na prática pôs a jovem democracia mongol debaixo de uma pressão que não a beneficia. E acabou por evidenciar a força relativa da Rússia, pelo menos em certas geografias.
Gengis Khan provavelmente não teria apreciado este exercício de Real Politik dos seus longínquos herdeiros, mas a Mongólia de hoje, mesmo se lá existem mais cavalos do que pessoas, há muito que deixou de ser temível. Os mongóis de hoje tiveram de ser razoáveis.
Diretor adjunto do Diário de Notícias