Perguntas Frequentes Sobre o Euro-2020 (3.ª Semana)

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Este é o melhor Campeonato da Europa de sempre? Ou, por outras palavras, este é o pior Campeonato da Europa de sempre?
Não, e não, por enquanto. A resposta a perguntas semelhantes será sempre "não" enquanto os eventos duram, e continuará a ser "não" pelo menos até haver mais dois ou três pontos de comparação futuros. A nossa compulsão para o rescaldo instantâneo tende a rasurar contingências e a querer validar instantaneamente o impulso para confundir a proximidade de uma emoção com uma qualquer precedência histórica. O futuro costuma tratar destes assuntos nos seus timings e não cede a pressões. Uma das melhores respostas ao debate periódico sobre a Era de Ouro da Ficção Científica (os anos 30 das revistas pulp? os anos 60 da New Wave?) limitou-se a propor que a Era de Ouro da Ficção Científica são os doze anos - o período em que se formam as memórias às quais todas as experiências posteriores serão comparadas. O melhor Europeu, tal como o melhor Mundial - tal como o melhor livro de ficção científica - nunca deve ser aquele que está a acontecer à nossa frente, nem o primeiro que aconteceu à nossa frente, mas sim aquele que melhor reproduz o deslumbramento da exposição inicial.

Dito isto, não é disparatado nesta altura sugerir que, em qualidade de jogos e quantidade de momentos memoráveis, este Europeu estará a ser melhor que 2004, 2012 e 2016, e não muito inferior ao de 2008 (que continua a ser o melhor Europeu deste século até agora - o The Stars My Destination da sua geração, portanto).

Aquilo que teima em acontecer à Bélgica desde 2014 é uma consequência inevitável de ter uma "geração de ouro"?
Não necessariamente, embora as leis do Universo que regulam as macro-narrativas desportivas por vezes pareçam comportar-se como poetas românticos. Mas, tal como as famílias infelizes, cada geração de ouro é dourada à sua maneira. A espanhola ganhou tudo, douradamente; as croatas e checas cumpriram-se sem traumas ou recriminações na mera chegada a pódios; a colombiana preferiu a imolação espalhafatosa; a inglesa derreteu o seu ouro (falso) numa (genuína) câmara ardente. A portuguesa optou, com grande bom senso, por apostar tudo na autoridade moral atribuída postumamente ao Sublime que não chegou a triunfar, e deixar as taças para uma não-geração posterior.

Que seja esse o destino da talentosa geração belga, e que o país conquiste o Mundial de 2026 com um futebol feio e utilitário, já com dois terços dos seus vultos na reforma, numa final em que a estrela Lukaku saia de maca aos quinze minutos de jogo, o rosto coberto de lágrimas, uma mariposa gigante pousada na têmpora. Que o golo da vitória seja marcado por Laurent Depoitre, no prolongamento, com um surpreendentemente elegante pontapé de bicicleta. Que o treinador seja Frank Vercauteren.

Isso foi uma boca ao Fernando Santos?
De todo, porque isso seria admitir que as circunstâncias específicas do trajecto português no Euro 2016 foram o resultado de um plano, uma tradução directa da vontade de Fernando Santos, em vez daquilo que foram - um assunto estritamente do foro da Nossa Senhora de Fátima, em estreita colaboração com alguns santos católicos, alguns insectos mágicos, e até alguns futebolistas (de Portugal, mas essencialmente de outros países).

No contexto do futebol de selecções e dos torneios internacionais, a figura do treinador tem uma ligação com a realidade muitíssimo mais ténue do que acontece no futebol de clubes. A função é quase cerimonial: um estranho híbrido de Chefe de Estado e Provedor do Adepto, cuja tarefa é pantominar na linha lateral as flutuações erráticas da auto-estima colectiva. Fernando Santos encarnou essa função melhor que qualquer outro seleccionador na nossa História, e durante anos, mas especialmente durante as semanas do Euro-2016, foi simultaneamente pior treinador que todos os adeptos e melhor adepto que todos os treinadores (de bancada): impotente para influenciar o rumo dos acontecimentos, gritando instruções mudas para pessoas que não querem nem conseguem ouvi-lo, esbracejando furiosamente perante cada micro-injustiça, mas exibindo a única atitude correcta perante um sucesso inesperado: garantir com toda a seriedade que as coisas que aconteceram foram as que ele mais queria que acontecessem, exactamente daquela maneira. Ninguém no futebol português conquistou com tanto mérito o direito à total inimputabilidade.

Esta Espanha, esta Itália... É possível que estejamos a atravessar um fukuyâmico "Fim das Ideologias"?
O debate sobre estilos ou identidades futebolísticas é interessante, mas também pode rapidamente tornar-se aborrecido - afunilando toda a expansiva diversidade do jogo e reduzindo-o a dois campos rivais, o positivo e o negativo. Em parte isto é uma consequência mais ou menos inevitável de qualquer debate (em que as formas de "ser contra" ou "a favor" procuram avidamente um conteúdo irrelevante para se auto-preencher), mas também daquilo que Barcelona e Espanha fizeram mais ou menos entre 2008 e 2012, um período em que cada jogo era uma equipa a tentar ao mesmo tempo jogar futebol de uma maneira irrepetível e escrever um editorial defendendo as virtudes de jogar daquela maneira.

Salvo raríssimas excepções como essa, as identidades futebolísticas são prismas que refractam a luz da verdade, filtrando as falíveis e incompletas sub-mecânicas do jogo de forma a alinhar o que se passa em campo com um Jogo puro: platónico, perfeito - e impossível. A diferença que interessa não é entre abordagens conceptuais, mas entre a presença ou ausência da imaginação necessária para resolver o problema inesperado quando ele se anuncia. A Itália é a equipa mais interessante em prova não porque privilegia a posse, ou porque privilegia a verticalidade, ou porque privilegia a solidez defensiva e as transições rápidas, mas porque reage imaginativamente a cada momento do jogo recorrendo às ferramentas mais úteis para aquele momento. Em dados momentos, isso pode ser um rendilhado hipertroficamente paciente tecido entre Jorginho e Verratti, noutros pode ser um lateral tresloucado a correr 60 metros sozinho, noutros pode ser Chiellini (alguém cuja auto-imagem parece exigir uma permanente ligadura ensanguentada à volta do crânio) a oferecer a sua cara como derradeiro sacrifício para que a bola não incomode o guarda-redes.

Quanta pena devemos sentir do que aconteceu a Spinazzola?
Muitíssima, independentemente do nosso investimento no sucesso da Itália. Estava a ser um dos melhores jogadores do torneio, e fornecia ainda o adicional motivo de interesse de ser não propriamente um indivíduo a jogar futebol, mas sim o ocupante de um cargo e fiel depositário de uma tradição: o lateral rápido, atlético, multi-usos, ultra-competente, e filosoficamente ambidextro (mesmo que não o seja na prática) que é uma antiga especialidade italiana, e de que Spinazzola foi o melhor exemplar desde Zambrotta.

Se calhar, a haver ainda uma ideologia em prova, é a da selecção inglesa?
É uma pergunta horrível, mas não menos horrível do que a nesta altura provável presença da selecção inglesa (este texto está a ser escrito algumas horas antes do Inglaterra-Ucrânia) na final do próximo Domingo. É claro que a maneira de jogar desta Inglaterra constitui uma ideologia. Mesmo que não tenha nome, reconhecemos os seus efeitos, e a linhagem a que pertence: mini-séries da Netflix sobre detectives em cidades pequenas cujos pais sofrem todos de Alzheimer, Neil deGrasse Tyson de camisola de gola alta a explicar que há uma beleza intrínseca nas equações, extremos velozes a correrem em linha recta até chocarem contra a primeira coisa que lhes aparece à frente,

Que Deus abençoe a Ucrânia - ou, em caso disso, a Dinamarca.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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